INTRODUÇÃO
Trata-se de um romance de um teor psicológico muito elevado e com um tipo de linguagem muito directa, onde os principais protagonistas se assumem como os próprios narradores da peripécia que se vai desenrolando ao longo da história...
A história de um mundo pequeno em que todas as personagens têm uma forte ligação entre si mesmas, mesmo que não o saibam. Pessoas perturbadas, crianças com amigos imaginários, gente que se agarra à profissão para esquecer tudo o resto, homosexuais com crises de identidade, adolescentes revoltados, mulheres frustradas, homens ambiciosos, seres que se cruzam todos os dias sem darem conta das perturbações uns dos outros...
Excerto 1º à 91ª página - Narrador 8º, Guilherme:
Ela vai entrar para o carro. Sigo-a. Tenho o dia de folga todo à disposição para andar atrás da fulana. Sigo-a desde as oito da manhã. Desde que saiu de casa. Pára em dezenas de sítios diferentes, parece que procura alguma coisa, que anda atrás de pistas, que não encontra em lado nenhum aquilo que procura. Parece ir finalmente a caminho de casa. Sim, é por certo o caminho de regresso ao lar. Passo-lhe à frente quando estamos quase a chegar ao quarteirão onde mora, estaciono perto da sua casa, salto o muro do portão velho e escondo-me atrás de uma barraca de madeira de aspecto frágil que fica ao lado do outro portão grande que dá para a garagem. Espero aí, quieto, por uns intermináveis dois ou três minutos. Ela chega finalmente, sai do carro, abre os dois portões, o do quintal e o da garagem, volta a pé até ao carro e é ai que eu aproveito para correr para dentro da garagem onde um mini velho parece apodrecer ao labor do tempo. Dentro da garagem, escondo-me por detrás do veículo velho e aguardo a entrada da jovem ao volante de um recém-adquirido carro de gaja, daqueles novos, dois lugares apenas, tão pequenos que cabem em qualquer buraco onde caberia um caixote de lixo, matrícula de há três meses atrás, já uma pequena moça a sobressair perto do pisca frontal esquerdo. Entra tranquilamente na garagem, sai do carro, vai lá fora fechar o portão da rua, volta a entrar na garagem, puxa o portão para baixo com força e com a ajuda dos dois braços, fá-lo trancar-se com a ajuda da chave a rodar lentamente na fechadura e lá estou eu. Quando se vira, estou mesmo na cara dela, o capuz preto esconde-me o rosto e umas luvas de cabedal fino agarram um canivete pequeno que encosto à sua barriga magra. O susto fá-la soltar um grito tão agudo quanto ensurdecedor, um berro que será capaz de alertar a vizinhança.
- Cala-te, puta de merda. – Grito eu. Rasgo um bocado de um adesivo largo que tenho no bolso do casaco e tento tapar-lhe a boca. Ela tenta resistir e com a mão direita dou-lhe um estalo que a faz virar a cara. Antes de lhe colar o adesivo sobre a boca ainda tem tempo para dizer:
- Seguiste-me até minha própria casa! Quem raio pensas que és? Vais-me matar porque achas que eu sei demais não é?
- Já te mandei calar – e tapo-lhe a boca. Não sei do que fala. Isso deixa-me um pouco confuso. Mesmo assim, continuo! Rasgo-lhe primeiro a camisa e deito-a no chão à força. Ela tenta resistir e pelo meio ainda lhe dou mais umas bofetadas.
- Pára quieta! Queres morrer, caralho? – Encosto-lhe a lâmina do canivete ao pescoço e vejo-a a desistir. Com a desistência, um choro compulsivo. Dispo-lhe as calças e desaperto a minha braguilha. Não lhe tiro as cuecas, afasto-as apenas e com toda a minha imponência, penetro-a perante o seu rosto choroso e o seu olhar sofrido. Regozijo-me com a sua dor, cada vez a penetro com mais violência, a cada segundo que passa sinto o orgasmo mais perto, até que por fim me sinto a ejacular dentro de si. Nesse momento, sinto nojo. Nojo de mim mesmo, nojo daquela criatura moribunda e magoada debaixo de mim, nojo do mundo inteiro e do que está para além desse mundo inteiro. Levanto-me, olho-a ainda deitada sobre o chão frio, apetece-me bater-lhe, mas não sei bem por que razão, resisto. Talvez por pena! Estou a ficar velho para estas coisas, ao que vejo. Quem me viu e quem me vê, até já me dou ao luxo de ter pena.
- Vá, levanta-te e vai tomar um banho. Tira o adesivo da boca debaixo do chuveiro, a água quente e o vapor ajudam a cola a sair. Escusas de tentar contactar a polícia que estás sem telefone e o teu telemóvel levo-o eu por questões de segurança, depois mando-to por correio. Amanhã ou depois…
Excerto 2º à 127ª página - Narrador 6º, Alex:
A mim, foi-me dada uma função! Para todos os outros que parecem passar por mim, esta parece somente mais uma sexta-feira como outra qualquer, mas para mim é um dia especial, eu vou em contra-mão, eles vêm todos para cá, descendo a rua, e eu vou exactamente no sentido inverso, subindo a rua, com o ritmo das baquetas na minha cabeça, o tas, tas, tas constante, a resposta, a contra-resposta, a ordem e a aceitação desta com o orgulho de a assumir como minha função no seio daquela família constituída por homens sem idades, sem nomes, sem ídolo nenhum para além de Jehova, sem receios de lutar pelas suas causas, ordenados por sapientíssimos experientes, movidos pela arte e para a arte como forma de comunicação mais sublime. E quando entramos no seio de uma família destas, recusamo-nos a seguir as multidões, a caminhar na direcção para que todos caminham, de sacos, pastas, malas, óculos, carteiras e telemóveis pelas mãos, em passos inconscientes e apressados para lado nenhum, desprezando os mendigos, os pássaros, as flores e os cheiros que vagueiam por entre os seus passos perdidos. E por um momento sento-me no lugar de Deus para provar que estão todos automatizados. Faço chover e eis que na multidão todos olham para cima primeiro e abrem o chapéu-de-chuva depois. Agora são tudo chapéus-de-chuva, deixa de se lhes ver as cabeças por completo. Eis que mando fazer sol e todos fecham o chapéu-de-chuva. Aumento a temperatura e todos despem o casaco. Faço passar uma miúda gira em contra-mão e todas as cabeças de homens entre os catorze e os setenta anos se viram para trás de olhos muito abertos e carinhas de doentes mentais. Faço tocar o sino da igreja e todos olham para o relógio. Faço o autocarro chegar mais cedo e eis que todos correm para o apanhar. Faço com que arranque antes de qualquer um deles conseguir chegar e eis que ficam todos com ares tristes como se a vida deles dependesse daquele autocarro. Faço a energia falhar, todos os carros pararem, todos os ponteiros de relógio avariarem e todos os barulhos calarem. As pessoas param todas, deixam de correr ou de andar em passos apressados, ficam todas quietas a olharem umas para as outras, estranhas. Não se conhecem de lado nenhum apesar de se cruzarem ou apanharem o mesmo autocarro todos os dias. Calam-se e olham em seu redor para confirmar que o mundo parou, não sabem o que fazer, não tarda daí a pouco e todos estarão em pânico, cheios de medo porque a máquina do dia-a-dia parece ter bloqueado, parece ter encravado como um elevador que pára a meio da sua caminhada, uma máquina que está desligada como se de um fusível queimado se tratasse, um livro que se fecha a meio de um conto e se recusa a abrir mais, um avião que estanca no ar e cessa a sua marcha em pleno espaço aéreo, que não cai mas também não aterra, que não choca com nada mas também se recusa a sair dali. E no meio da multidão silenciosa que aguarda ansiosamente que tudo volte ao normal, salta uma criança aos berros de alegria, correndo por entre as pernas dos adultos petrificados:
- O mundo parou, mãe! O mundo parou… Isto é lindo!!!
Excerto 3º à 131ª página - Narrador 9º, Toninho:
Polícia. Se não estivesse tão empenhado em estudar para tirar o curso de deus, ia querer ser polícia quando crescer. Acho que ia ter jeito para a coisa, tenho vocação ou lá o que isso é. Estou mesmo a ver-me com uma pistola, tás, pás, como nos filmes, a fazer cair os ladrões de bancos, os maus que batem nos mais fracos e os tarados que se aproveitam das miúdas mais giras. Pego no boneco azul das forças especiais e faço-o apontar a pistola para o urso gigante que está a obrigar a mulher dos cabelos amarelos a fazer coisas que ela não gosta de fazer. O urso vê a pistola e assusta-se, mas consegue saltar para cima do boneco azul e atirar a arma ao chão. Os dois envolvem-se numa luta séria, desatam a bater com os pés juntos um no outro, a dar saltos mortais e o urso consegue por fim pisar o corpo do boneco azul por inteiro. A mulher dos cabelos amarelos não perde pela demora e pega na pistola, desata a disparar sobre o urso e este começa a torcer o corpo todo de forma estranha, cheio de dores, até cair no chão como morto. Morre, animal! A mulher do cabelo amarelo corre para os braços do boneco azul das forças especiais e os dois começam aos beijos, daqueles demorados, bem encostados e a rodarem as cabeças para um lado e para o outro.
- Toninho, o que estás a fazer?
- Os bonecos começaram a namorar, mãe!
- Ok, está certo! Agora vamos, que a mãe está atrasada – a mãe não quer que eu fique em casa da tia depois do que se passou no outro dia. Pelo menos, por enquanto, até falarem melhor no assunto e resolverem as coisas como os adultos costumam resolver. O tio foi preso no dia em que saiu do hospital, o pai tratou de tudo, falou com os senhores da polícia e eles vieram buscá-lo.
- Vamos, não demores – a mãe chama mais uma vez. Hoje vou ver onde trabalha, ela diz que tenho de dormir no quarto lá do emprego dela, espero que seja uma cama e não um sofá, dão-me dores nas costas, as almofadas são fofas demais e eu tenho um problema qualquer em dormir em lugares moles.
No carro, pergunto à mãe se ela me deixa ficar acordado até mais tarde a ver televisão lá no trabalho dela, assim só porque é uma vez por acaso, uma excepção, como ela costuma dizer quando me compra qualquer coisa no dia de ir fazer compras ao supermercado grande do centro comercial.
- Há uma televisão no quarto, podes assistir desde que não esteja a dar nenhum filme impróprio para a tua idade.
Impróprio para a minha idade? Gosto de aprender estas frases, dá sempre jeito para quando tiver um irmão mais novo.
- Mas eu já sou um homenzinho. Não te esqueceste, mãe, pois não?
Quando chegamos ao trabalho da mãe, vejo uma quantidade de luzes que piscam e outras que rodam. A mãe sobe umas escadas e as pessoas que estão na sala escura ficam a olhar para nós a subir degrau por degrau. Subimos para uma espécie de palco e ao fundo, entramos numa porta que fica por trás duma cortina vermelha.
- É aqui o quarto onde vais ficar enquanto a mãe vai trabalhar. A mãe vai servir bebidas aos senhores que estão sentados lá fora.
Dentro do quarto, estão mais três mulheres, uma a despir-se, outra a vestir-se e a última completamente nua, com as mamas ao léu e a vestir umas cuecas tão depressa quanto pode, se calhar por ter vergonha de eu estar ali. Acho giras, as mamas dela.
- È o teu filho? Tão giro…
- Este é o Toninho! Estas senhoras são colegas da mãe – e a mãe começa a despir a roupa que trás vestida para vestir uma roupa que tira do armário do canto, junto à casa de banho. Eu começo a olhar para todas aquelas roupas penduradas, para aquelas mulheres quase nuas, para todos aqueles espelhos e uma televisão aos gritos por cima de um sofá velho, e começo a sentir-me estranho, assim meio tonto.
- Estás branco, filho! Passa-se alguma coisa?
- Deve ser por causa do fumo do tabaco, apaga essa merda Rute! – A Rute parece a boneca dos cabelos amarelos, a que começou a namorar com o boneco das forças especiais por causa do caso do urso mau.
- Desculpa, querido! Não costumamos ter aqui crianças e eu esqueci-me de apagar a porcaria do cigarro. – A Rute é simpática, sorridente como a boneca dos cabelos amarelos, agora já não tem as mamas bonitas ao léu.
- Essa cabra qualquer dia morre de tanto fumar. Parece uma chaminé. – A mulher preta fala como se fosse dona do mundo, como se mandasse nas outras todas, chama-lhes nomes e diz muitas vezes a palavra merda, parece-me um bocado estúpida, antipática.
Vou deitar-me no sofá a ver televisão, a senhora simpática que deve ter um namorado das forças especiais faz o favor de baixar um pouco o som e eu agradeço com um sorriso.
- A mãe já vem, filho! Quando tiveres sono, podes dormir à vontade. Não é propriamente a tua cama mas dá para desenrascar.
A mãe vai lá para fora, para a sala escura, servir bebidas aos senhores que há pouco nos olhavam a subir as escadas. As outras vão com ela e a música que vem de lá, às vezes fica mais alta, outras vezes mal se ouve. Acabo por adormecer e acordar um monte de vezes, sempre a ver se a minha mãe já me vem buscar para irmos para casa. Não gosto muito deste sítio, cheira muito a perfume e eu começo a sentir-me enjoado. E depois, a mulher preta mete-me medo, de vez em quando entra, troca de roupa outra vez, e fica a olhar para mim a abanar a cabeça. Eu finjo que não vejo, abro os olhos só um bocadinho, de forma que ela não consiga ver que estou a vê-la. Lá acabo por adormecer outra vez e daí a não sei bem quanto tempo volto a acordar e dá-me a sensação que vejo a minha mãe a sair do quarto e a fechar a porta. Deve ter vindo mudar de roupa, como as outras estão sempre a fazer. Levanto-me e apetece-me ir espreitar, para ver onde ela está. Esfrego os olhos para tirar as remelas que me atrapalham a visão e abro a porta devagarinho para ninguém me ouvir. Saio do quarto e afasto um pouco o cortinado vermelho. As luzes batem-me na cara e primeiro não consigo ver nada, depois reparo que estão todos a olhar para o palco muito curiosos. No palco está uma mulher a dançar e quando olho com mais atenção vejo que é a minha mãe. Deve estar a divertir-se um pouco, a fazer uma pausa do trabalho e a dançar um pouco. Os homens assobiam e ela começa a despir-se muito lentamente. Passado uns minutos, não sei quantos, não me perguntem, ela está completamente nua e eu fico muito confuso, pois pensei que as pessoas tinham vergonha de se despirem à frente dos outros. Mas a mãe despiu-se toda, uma peça de roupa de cada vez, os homens todos a olharem para ela com ar de malucos. Ela parece que vai voltar ao quarto e eu desato a correr, abro a porta, fecho-a com força e corro para o sofá onde estava a dormir. Ela não demora nada a entrar e por momentos tenho a impressão de que está a olhar para mim, a verificar que estou mesmo a dormir, talvez tenha ouvido a porta bater.
Excerto 4º à página 142 - Narrador 6º – Alex:
- Diana, que fazes aqui?
Ela não me responde e do meu lado esquerdo ouço o que parece o barulho de uma pá a cavar terra dura. Olho com atenção na tentativa de vislumbrar alguma coisa na escuridão que a noite trouxe e um fulano parece cavar de um lado para enterrar qualquer coisa no buraco ao lado. Não consigo ver bem e ouso sair do carro para perceber de mais perto o que está a acontecer. Quando caminho no encalço do tipo que sustenta a pá nas mãos, ouço Diana chamar-me. Olho para trás.
- Enterra-os Alex, eles deram cabo do nosso amor e da nossa vida! Enterra-os…
Quando devolvo o olhar ao tipo que está a despejar areia na depressão da terra, sinto que me estou a olhar ao espelho. Como posso estar aqui e estar ali?
- Estão mortos! Estão finalmente mortos! Ajuda-me a enterrá-los…
Quando espreito a cova que se desenha à minha frente, vejo as caras do preto e do cabrão do louro que naquela noite destruíram aquilo que demorou meses a construir. A areia cai-lhes em cima e desliza no rosto até desaparecer e estes ficarem de cara completamente lavada. Tiro a pá das mãos do clone ao meu lado direito e com gestos violentos mando toda a terra possível para cima do rosto dos inimigos, sem qualquer progresso, as caras sempre lá, um sorriso venenoso nos lábios, os olhos fechados não assistem à minha ira. Lá trás, Diana grita:
- És um inútil!
Olho para trás para tentar explicar que estou a fazer tudo o que está ao meu alcance mas ela já não está lá. Desisto! Os joelhos aterram por entre as pedras minúsculas, a pá cai-me das mãos na gravidade do terreno árido e na face uma lágrima negra corre todo o rosto até cair na areia indefesa. O meu clone desiste também e deita-se dentro do segundo buraco que cavou e de onde tirara até então a terra com que tentava enterrar os dois tipos nojentos deitados lado a lado, cúmplices nas suas caminhadas, parceiros nas prevaricações do dia-a-dia, cheios de segredos que mais ninguém sabe e que são só dos dois, que levam para a cova, que enterram para sempre, traumas de outras almas que escolheram magoar.