Thursday, October 26, 2006

INTRODUÇÃO

"O CAÇADOR DE DONS" será o terceiro romance de Paz Kardo a sair lá para Março de 2007, depois dos romances "Ausência", Ed. Minerva/2005 e "Não há Certezas", Edições EC/2006.

Trata-se de um romance de um teor psicológico muito elevado e com um tipo de linguagem muito directa, onde os principais protagonistas se assumem como os próprios narradores da peripécia que se vai desenrolando ao longo da história...

A história de um mundo pequeno em que todas as personagens têm uma forte ligação entre si mesmas, mesmo que não o saibam. Pessoas perturbadas, crianças com amigos imaginários, gente que se agarra à profissão para esquecer tudo o resto, homosexuais com crises de identidade, adolescentes revoltados, mulheres frustradas, homens ambiciosos, seres que se cruzam todos os dias sem darem conta das perturbações uns dos outros...



Excerto 1º à 91ª página - Narrador 8º, Guilherme:

Ela vai entrar para o carro. Sigo-a. Tenho o dia de folga todo à disposição para andar atrás da fulana. Sigo-a desde as oito da manhã. Desde que saiu de casa. Pára em dezenas de sítios diferentes, parece que procura alguma coisa, que anda atrás de pistas, que não encontra em lado nenhum aquilo que procura. Parece ir finalmente a caminho de casa. Sim, é por certo o caminho de regresso ao lar. Passo-lhe à frente quando estamos quase a chegar ao quarteirão onde mora, estaciono perto da sua casa, salto o muro do portão velho e escondo-me atrás de uma barraca de madeira de aspecto frágil que fica ao lado do outro portão grande que dá para a garagem. Espero aí, quieto, por uns intermináveis dois ou três minutos. Ela chega finalmente, sai do carro, abre os dois portões, o do quintal e o da garagem, volta a pé até ao carro e é ai que eu aproveito para correr para dentro da garagem onde um mini velho parece apodrecer ao labor do tempo. Dentro da garagem, escondo-me por detrás do veículo velho e aguardo a entrada da jovem ao volante de um recém-adquirido carro de gaja, daqueles novos, dois lugares apenas, tão pequenos que cabem em qualquer buraco onde caberia um caixote de lixo, matrícula de há três meses atrás, já uma pequena moça a sobressair perto do pisca frontal esquerdo. Entra tranquilamente na garagem, sai do carro, vai lá fora fechar o portão da rua, volta a entrar na garagem, puxa o portão para baixo com força e com a ajuda dos dois braços, fá-lo trancar-se com a ajuda da chave a rodar lentamente na fechadura e lá estou eu. Quando se vira, estou mesmo na cara dela, o capuz preto esconde-me o rosto e umas luvas de cabedal fino agarram um canivete pequeno que encosto à sua barriga magra. O susto fá-la soltar um grito tão agudo quanto ensurdecedor, um berro que será capaz de alertar a vizinhança.

- Cala-te, puta de merda. – Grito eu. Rasgo um bocado de um adesivo largo que tenho no bolso do casaco e tento tapar-lhe a boca. Ela tenta resistir e com a mão direita dou-lhe um estalo que a faz virar a cara. Antes de lhe colar o adesivo sobre a boca ainda tem tempo para dizer:

- Seguiste-me até minha própria casa! Quem raio pensas que és? Vais-me matar porque achas que eu sei demais não é?

- Já te mandei calar – e tapo-lhe a boca. Não sei do que fala. Isso deixa-me um pouco confuso. Mesmo assim, continuo! Rasgo-lhe primeiro a camisa e deito-a no chão à força. Ela tenta resistir e pelo meio ainda lhe dou mais umas bofetadas.

- Pára quieta! Queres morrer, caralho? – Encosto-lhe a lâmina do canivete ao pescoço e vejo-a a desistir. Com a desistência, um choro compulsivo. Dispo-lhe as calças e desaperto a minha braguilha. Não lhe tiro as cuecas, afasto-as apenas e com toda a minha imponência, penetro-a perante o seu rosto choroso e o seu olhar sofrido. Regozijo-me com a sua dor, cada vez a penetro com mais violência, a cada segundo que passa sinto o orgasmo mais perto, até que por fim me sinto a ejacular dentro de si. Nesse momento, sinto nojo. Nojo de mim mesmo, nojo daquela criatura moribunda e magoada debaixo de mim, nojo do mundo inteiro e do que está para além desse mundo inteiro. Levanto-me, olho-a ainda deitada sobre o chão frio, apetece-me bater-lhe, mas não sei bem por que razão, resisto. Talvez por pena! Estou a ficar velho para estas coisas, ao que vejo. Quem me viu e quem me vê, até já me dou ao luxo de ter pena.

- Vá, levanta-te e vai tomar um banho. Tira o adesivo da boca debaixo do chuveiro, a água quente e o vapor ajudam a cola a sair. Escusas de tentar contactar a polícia que estás sem telefone e o teu telemóvel levo-o eu por questões de segurança, depois mando-to por correio. Amanhã ou depois…



Excerto 2º à 127ª página - Narrador 6º, Alex:

A mim, foi-me dada uma função! Para todos os outros que parecem passar por mim, esta parece somente mais uma sexta-feira como outra qualquer, mas para mim é um dia especial, eu vou em contra-mão, eles vêm todos para cá, descendo a rua, e eu vou exactamente no sentido inverso, subindo a rua, com o ritmo das baquetas na minha cabeça, o tas, tas, tas constante, a resposta, a contra-resposta, a ordem e a aceitação desta com o orgulho de a assumir como minha função no seio daquela família constituída por homens sem idades, sem nomes, sem ídolo nenhum para além de Jehova, sem receios de lutar pelas suas causas, ordenados por sapientíssimos experientes, movidos pela arte e para a arte como forma de comunicação mais sublime. E quando entramos no seio de uma família destas, recusamo-nos a seguir as multidões, a caminhar na direcção para que todos caminham, de sacos, pastas, malas, óculos, carteiras e telemóveis pelas mãos, em passos inconscientes e apressados para lado nenhum, desprezando os mendigos, os pássaros, as flores e os cheiros que vagueiam por entre os seus passos perdidos. E por um momento sento-me no lugar de Deus para provar que estão todos automatizados. Faço chover e eis que na multidão todos olham para cima primeiro e abrem o chapéu-de-chuva depois. Agora são tudo chapéus-de-chuva, deixa de se lhes ver as cabeças por completo. Eis que mando fazer sol e todos fecham o chapéu-de-chuva. Aumento a temperatura e todos despem o casaco. Faço passar uma miúda gira em contra-mão e todas as cabeças de homens entre os catorze e os setenta anos se viram para trás de olhos muito abertos e carinhas de doentes mentais. Faço tocar o sino da igreja e todos olham para o relógio. Faço o autocarro chegar mais cedo e eis que todos correm para o apanhar. Faço com que arranque antes de qualquer um deles conseguir chegar e eis que ficam todos com ares tristes como se a vida deles dependesse daquele autocarro. Faço a energia falhar, todos os carros pararem, todos os ponteiros de relógio avariarem e todos os barulhos calarem. As pessoas param todas, deixam de correr ou de andar em passos apressados, ficam todas quietas a olharem umas para as outras, estranhas. Não se conhecem de lado nenhum apesar de se cruzarem ou apanharem o mesmo autocarro todos os dias. Calam-se e olham em seu redor para confirmar que o mundo parou, não sabem o que fazer, não tarda daí a pouco e todos estarão em pânico, cheios de medo porque a máquina do dia-a-dia parece ter bloqueado, parece ter encravado como um elevador que pára a meio da sua caminhada, uma máquina que está desligada como se de um fusível queimado se tratasse, um livro que se fecha a meio de um conto e se recusa a abrir mais, um avião que estanca no ar e cessa a sua marcha em pleno espaço aéreo, que não cai mas também não aterra, que não choca com nada mas também se recusa a sair dali. E no meio da multidão silenciosa que aguarda ansiosamente que tudo volte ao normal, salta uma criança aos berros de alegria, correndo por entre as pernas dos adultos petrificados:
- O mundo parou, mãe! O mundo parou… Isto é lindo!!!



Excerto 3º à 131ª página - Narrador 9º, Toninho:

Polícia. Se não estivesse tão empenhado em estudar para tirar o curso de deus, ia querer ser polícia quando crescer. Acho que ia ter jeito para a coisa, tenho vocação ou lá o que isso é. Estou mesmo a ver-me com uma pistola, tás, pás, como nos filmes, a fazer cair os ladrões de bancos, os maus que batem nos mais fracos e os tarados que se aproveitam das miúdas mais giras. Pego no boneco azul das forças especiais e faço-o apontar a pistola para o urso gigante que está a obrigar a mulher dos cabelos amarelos a fazer coisas que ela não gosta de fazer. O urso vê a pistola e assusta-se, mas consegue saltar para cima do boneco azul e atirar a arma ao chão. Os dois envolvem-se numa luta séria, desatam a bater com os pés juntos um no outro, a dar saltos mortais e o urso consegue por fim pisar o corpo do boneco azul por inteiro. A mulher dos cabelos amarelos não perde pela demora e pega na pistola, desata a disparar sobre o urso e este começa a torcer o corpo todo de forma estranha, cheio de dores, até cair no chão como morto. Morre, animal! A mulher do cabelo amarelo corre para os braços do boneco azul das forças especiais e os dois começam aos beijos, daqueles demorados, bem encostados e a rodarem as cabeças para um lado e para o outro.
- Toninho, o que estás a fazer?
- Os bonecos começaram a namorar, mãe!
- Ok, está certo! Agora vamos, que a mãe está atrasada – a mãe não quer que eu fique em casa da tia depois do que se passou no outro dia. Pelo menos, por enquanto, até falarem melhor no assunto e resolverem as coisas como os adultos costumam resolver. O tio foi preso no dia em que saiu do hospital, o pai tratou de tudo, falou com os senhores da polícia e eles vieram buscá-lo.
- Vamos, não demores – a mãe chama mais uma vez. Hoje vou ver onde trabalha, ela diz que tenho de dormir no quarto lá do emprego dela, espero que seja uma cama e não um sofá, dão-me dores nas costas, as almofadas são fofas demais e eu tenho um problema qualquer em dormir em lugares moles.
No carro, pergunto à mãe se ela me deixa ficar acordado até mais tarde a ver televisão lá no trabalho dela, assim só porque é uma vez por acaso, uma excepção, como ela costuma dizer quando me compra qualquer coisa no dia de ir fazer compras ao supermercado grande do centro comercial.
- Há uma televisão no quarto, podes assistir desde que não esteja a dar nenhum filme impróprio para a tua idade.
Impróprio para a minha idade? Gosto de aprender estas frases, dá sempre jeito para quando tiver um irmão mais novo.
- Mas eu já sou um homenzinho. Não te esqueceste, mãe, pois não?
Quando chegamos ao trabalho da mãe, vejo uma quantidade de luzes que piscam e outras que rodam. A mãe sobe umas escadas e as pessoas que estão na sala escura ficam a olhar para nós a subir degrau por degrau. Subimos para uma espécie de palco e ao fundo, entramos numa porta que fica por trás duma cortina vermelha.
- É aqui o quarto onde vais ficar enquanto a mãe vai trabalhar. A mãe vai servir bebidas aos senhores que estão sentados lá fora.
Dentro do quarto, estão mais três mulheres, uma a despir-se, outra a vestir-se e a última completamente nua, com as mamas ao léu e a vestir umas cuecas tão depressa quanto pode, se calhar por ter vergonha de eu estar ali. Acho giras, as mamas dela.
- È o teu filho? Tão giro…
- Este é o Toninho! Estas senhoras são colegas da mãe – e a mãe começa a despir a roupa que trás vestida para vestir uma roupa que tira do armário do canto, junto à casa de banho. Eu começo a olhar para todas aquelas roupas penduradas, para aquelas mulheres quase nuas, para todos aqueles espelhos e uma televisão aos gritos por cima de um sofá velho, e começo a sentir-me estranho, assim meio tonto.
- Estás branco, filho! Passa-se alguma coisa?
- Deve ser por causa do fumo do tabaco, apaga essa merda Rute! – A Rute parece a boneca dos cabelos amarelos, a que começou a namorar com o boneco das forças especiais por causa do caso do urso mau.
- Desculpa, querido! Não costumamos ter aqui crianças e eu esqueci-me de apagar a porcaria do cigarro. – A Rute é simpática, sorridente como a boneca dos cabelos amarelos, agora já não tem as mamas bonitas ao léu.
- Essa cabra qualquer dia morre de tanto fumar. Parece uma chaminé. – A mulher preta fala como se fosse dona do mundo, como se mandasse nas outras todas, chama-lhes nomes e diz muitas vezes a palavra merda, parece-me um bocado estúpida, antipática.
Vou deitar-me no sofá a ver televisão, a senhora simpática que deve ter um namorado das forças especiais faz o favor de baixar um pouco o som e eu agradeço com um sorriso.
- A mãe já vem, filho! Quando tiveres sono, podes dormir à vontade. Não é propriamente a tua cama mas dá para desenrascar.
A mãe vai lá para fora, para a sala escura, servir bebidas aos senhores que há pouco nos olhavam a subir as escadas. As outras vão com ela e a música que vem de lá, às vezes fica mais alta, outras vezes mal se ouve. Acabo por adormecer e acordar um monte de vezes, sempre a ver se a minha mãe já me vem buscar para irmos para casa. Não gosto muito deste sítio, cheira muito a perfume e eu começo a sentir-me enjoado. E depois, a mulher preta mete-me medo, de vez em quando entra, troca de roupa outra vez, e fica a olhar para mim a abanar a cabeça. Eu finjo que não vejo, abro os olhos só um bocadinho, de forma que ela não consiga ver que estou a vê-la. Lá acabo por adormecer outra vez e daí a não sei bem quanto tempo volto a acordar e dá-me a sensação que vejo a minha mãe a sair do quarto e a fechar a porta. Deve ter vindo mudar de roupa, como as outras estão sempre a fazer. Levanto-me e apetece-me ir espreitar, para ver onde ela está. Esfrego os olhos para tirar as remelas que me atrapalham a visão e abro a porta devagarinho para ninguém me ouvir. Saio do quarto e afasto um pouco o cortinado vermelho. As luzes batem-me na cara e primeiro não consigo ver nada, depois reparo que estão todos a olhar para o palco muito curiosos. No palco está uma mulher a dançar e quando olho com mais atenção vejo que é a minha mãe. Deve estar a divertir-se um pouco, a fazer uma pausa do trabalho e a dançar um pouco. Os homens assobiam e ela começa a despir-se muito lentamente. Passado uns minutos, não sei quantos, não me perguntem, ela está completamente nua e eu fico muito confuso, pois pensei que as pessoas tinham vergonha de se despirem à frente dos outros. Mas a mãe despiu-se toda, uma peça de roupa de cada vez, os homens todos a olharem para ela com ar de malucos. Ela parece que vai voltar ao quarto e eu desato a correr, abro a porta, fecho-a com força e corro para o sofá onde estava a dormir. Ela não demora nada a entrar e por momentos tenho a impressão de que está a olhar para mim, a verificar que estou mesmo a dormir, talvez tenha ouvido a porta bater.


Excerto 4º à página 142 - Narrador 6º – Alex:

Estou ao volante de um velho carro azul, de olhar vazio. A estrada é de um tom esverdeado. Dou três voltas à rotunda antes de prosseguir caminho, vejo o vermelho a cair no sinal e acelero até à subida teimosa que há mesmo aqui à frente. O motor do carro parece lutar contra o asfalto esverdeado de traços negros e por fim acaba por vencê-lo. Ali à frente há um sinal de STOP gasto do tempo e encostado a ele está o vulto de uma mulher vestida em tons arroxeados. Não lhe consigo ver o rosto, aproximo-me devagar, paro o carro sem nunca desligar o motor, abro vidro do lado direito e tento ver-lhe a cara. A mulher olha-me no olhos e reconheço-a. É a Diana!

- Diana, que fazes aqui?

Ela não me responde e do meu lado esquerdo ouço o que parece o barulho de uma pá a cavar terra dura. Olho com atenção na tentativa de vislumbrar alguma coisa na escuridão que a noite trouxe e um fulano parece cavar de um lado para enterrar qualquer coisa no buraco ao lado. Não consigo ver bem e ouso sair do carro para perceber de mais perto o que está a acontecer. Quando caminho no encalço do tipo que sustenta a pá nas mãos, ouço Diana chamar-me. Olho para trás.

- Enterra-os Alex, eles deram cabo do nosso amor e da nossa vida! Enterra-os…

Quando devolvo o olhar ao tipo que está a despejar areia na depressão da terra, sinto que me estou a olhar ao espelho. Como posso estar aqui e estar ali?

- Estão mortos! Estão finalmente mortos! Ajuda-me a enterrá-los…

Quando espreito a cova que se desenha à minha frente, vejo as caras do preto e do cabrão do louro que naquela noite destruíram aquilo que demorou meses a construir. A areia cai-lhes em cima e desliza no rosto até desaparecer e estes ficarem de cara completamente lavada. Tiro a pá das mãos do clone ao meu lado direito e com gestos violentos mando toda a terra possível para cima do rosto dos inimigos, sem qualquer progresso, as caras sempre lá, um sorriso venenoso nos lábios, os olhos fechados não assistem à minha ira. Lá trás, Diana grita:

- És um inútil!

Olho para trás para tentar explicar que estou a fazer tudo o que está ao meu alcance mas ela já não está lá. Desisto! Os joelhos aterram por entre as pedras minúsculas, a pá cai-me das mãos na gravidade do terreno árido e na face uma lágrima negra corre todo o rosto até cair na areia indefesa. O meu clone desiste também e deita-se dentro do segundo buraco que cavou e de onde tirara até então a terra com que tentava enterrar os dois tipos nojentos deitados lado a lado, cúmplices nas suas caminhadas, parceiros nas prevaricações do dia-a-dia, cheios de segredos que mais ninguém sabe e que são só dos dois, que levam para a cova, que enterram para sempre, traumas de outras almas que escolheram magoar.



Abaixo pode conferir os primeiros 21 capitulos deste novo romance de Paz Kardo...

1

Nota do autor:

Esta é a única oportunidade que me dão para usar da palavra durante toda peripécia que decorre daqui a diante. Não é justo, eu sei, eu propus-me a criar a história, a pensá-la, e depois de muito correr à procura de personagens à altura da história, de um casting rigoroso, lá encontrei uma série de gente cheia de problemas e com muitíssimas perturbações sentimentais e emocionais que de imediato aceitaram a oferta para trabalhar neste texto a que resolvi chamar de “o caçador de dons”. O pior aconteceu quando a dada altura uma das personagens convoca uma reunião extraordinária e exige que eu seja posto de lado deste projecto, diz ele que pela razão de que eu poderia colocar em perigo a história, por saber demais e correr o risco de desvendar demasiado cedo aquilo que se quer reservado apenas para o final de uma história como esta. “Mas se eu for demitido, quem narrará a história?”, a pergunta era obviamente a minha salvação, só eu conhecia a história à altura de poder narrá-la e julguei eu que o meu lugar neste projecto estava de novo salvaguardado. Puro engano! Resultado de reuniões sem fim, onde cada uma das personagens ficou a saber exactamente aquilo que se pretendia delas durante a história, quem melhor para a narrar que elas próprias? Era sem dúvida o meu fim nesta história, posto de lado, daria muito trabalho arranjar mais uma dúzia de personagens à altura que aceitassem trabalhar comigo nas condições que eu exigia, e mesmo que o conseguisse, seria tarde demais, já a história deles estaria completamente acabada e publicada e o mínimo que me podia acontecer ao lançar algo idêntico era ser acusado de plágio, coisa a que um autor que queira reservar algum futuro neste meio não quer nunca ser sujeito de estar sob suspeita. Desisti, pois então, entregando-lhes toda a responsabilidade da narração, aceitando que a minha função daí para a frente fosse apenas representá-los na apresentação da obra às editoras, aos leitores e à comunicação social, emprestando o meu nome à capa e escrevendo qualquer coisa numa nota de autor desde que nesta não denunciasse nunca qualquer facto da história que se segue. Àqueles que ainda tentaram defender que fosse eu o narrador, aqueles poucos que se recusaram a assumir esse papel, participando na história meramente como personagens, aos que escolheram enveredar pelo plano inicial, os meus agradecimentos sinceros. Aos outros, espero bem que tenham feito alguma coisa de jeito, eu não assumo quaisquer responsabilidades por descrições mal feitas, exageros ou distorções da realidade primeiramente pensada para o desenrolar desta narrativa. Aos leitores, apenas a informação que nas sessões de autógrafos serei eu a assinar os vossos livros, não se preocupem.

O CAÇADOR DE DONS

O CAÇADOR

DE DONS

“...NUM MUNDO TÃO PEQUENO, HÁ DONS QUE MAIS VALIAM PERMANECER ESCONDIDOS...”

2

Narrador 1º – Paulo Roberto

Noite cerrada e fria de Janeiro, os primeiros dias do ano teimam em ser cópia uns dos outros no que toca ao gelo que invade os ossos bem e mal agasalhados das almas nocturnas que vagueiam por Janeiro sem temor. Quando entro no bar, sacudo o casaco como que afastando o frio e vou directo ao balcão onde peço uma cerveja ao tipo de olhos esmiuçados e ar antipático que está do outro lado do que parece ser um muro de pedra envolto em tijoleira com um tampo de mármore. O cheiro faz adivinhar que algum bêbado mijou ali, mesmo contra o balcão, com intento provocador ou até quiçá por simples preguiça de se deslocar à casa de banho ao fundo do corredor ao lado esquerdo do balcão velho e pouco decoroso. Na minha mente viaja a imagem daquele jovem morto no passeio lá fora, ao frio, perdido para sempre, esquecido mal arrefeça a memória dorida da sua perda. Sacrilégio! Bebo um gole da cerveja e olho para o relógio sem ver as horas, apenas para passar o tempo e me distrair das imagens que não me libertam a mente. Levanto a garrafa da cerveja e num gole bebo-a de uma só vez perante o olhar absorto do empregado magro e mal-encarado à minha frente.

- Se eu fosse paneleiro, tinha de ser passivo. Para espetar na peida, espeto no das gajas – comenta um dos dois tipos que parecem estar no engate e que têm pinta de ser paneleiros há muito tempo, não só de agora. A conversa enoja-me um bocado e um dos tipos, o mais magro, repara na minha expressão de repulsa, embora se mantenha em silêncio e opte por não fazer qualquer comentário, nem à minha expressão de repugnância nem tão-pouco ao comentário do seu colega mais velho e com ares de endinheirado.

Abstraio-me da conversa e dos dois tipos abichanados e peço mais uma cerveja pousando apenas o dedo indicador da mão direita sobre o gargalo da garrafa e levantando o da mão esquerda visando assinalar o número um. Um, de mais uma cerveja, sinal que o magricelas compreende de imediato e logo executa na sua tarefa. Vou degustando esta segunda cerveja com mais lentidão, apreciando o seu sabor mais calmamente, enquanto revejo vezes sem conta a imagem da cabeça daquele jovem esmagada contra o lancil do passeio, o olhar vazio e sem alma a olhar para lado nenhum, o corpo inerte e sem vida ali estendido entre o alcatrão e o passeio, o sangue derramado e perdido para sempre largando as veias e rumando à estrada sem destino e sem querer ir para lado nenhum, a mulher que assistiu a tudo do outro lado da rua e que saiu aos gritos rumo a casa, sem querer acreditar no que o pecado dos seus olhos tinham visto, partindo para esquecer, sabendo – como eu – que aquela imagem nunca lhe sairá da cabeça.

Os dois tipos da conversa abichanada parecem entender-se finalmente e saem juntos rumo a um quarto de um hotel qualquer da cidade e no bar ficamos apenas quatro pessoas. Eu, o empregado mal-encarado, uma moça com ares brasileiros e formas bonitas que passa um pano amarelo e húmido sobre o tampo das mesas de madeira escura, e uma elegante mulher alta e bem vestida que da outra ponta do balcão me fita de cigarro longo em riste entre dedos e bem posto entre lábios. Nos seus olhos, um convite, no copo à sua frente, qualquer coisa com groselha que parece não agradar muito os gostos requintados da senhora que de imediato solicita ao empregado por um Whisky-cola. Um toque acidentado do empregado e o copo da groselha entorna-se sobre o balcão, e naquele instante é sangue que eu vejo, sangue que se espalha entre a estrada e a calçada, sangue de um crânio esmagado brutalmente pela violência de um choque. A mulher, pomposa, fita-me mais uma vez e acaba por desistir perante a passividade por mim demonstrada.

3

Narrador 2º – Gil

Estou mais ou menos a meio metro dele, quase ocupamos o mesmo metro quadrado de privacidade. Ele, bem mais velho, talvez na casa dos cinquenta, cabelos pintados de branco, algumas raízes pretas, quase não se notam, testa larga, nariz pontiagudo e queixo vistoso, rachado, imponente. Ares de dinheiro, quase cheira ao mesmo, perfume caro no pescoço e nos punhos, fio e pulseiras de ouro, botas de coro e postura segura, porém não demasiado máscula. Transpira charme, experiência, adivinha-se ter vivido com igual exultação e fervência os anos sessenta e os anos oitenta. Ambicioso, nota-se! Está interessado, ou então não estaria aqui comigo, falta só mesmo saber se é activo ou passivo. Algo o distrai e o afasta na mesma medida. Um homem entra pela porta do bar e sacode o seu casaco preto de cabedal com gestos brutos e o cinquentenário charmoso à minha frente parece temer ser visto tão perto de outro homem, ainda para mais com menos de metade da sua idade. Depois de se ter afastado ligeiramente, abandona finalmente a conversa sobre o seu trabalho de ensaísta e pergunta-me até onde pretendo chegar com o curso de Turismo que estou a frequentar. Respondo-lhe que prefiro falar de outra coisa adiantando apenas que me alicia a perspectiva de conhecer destinos diferentes, culturas diferentes, pessoas diferentes.

- Sou adepto da diferença – adianto ainda, ao que este responde num tom desdenhoso e usando uma linguagem que não lhe conhecera até então:

- Também eu! Aliás, se eu fosse paneleiro, tinha de ser passivo. Para espetar na peida, espeto no das gajas.

Pronto! Bela forma de se denunciar. Passivo, sem dúvida. Cabe-me a mim engendrar a continuidade do bate-papo, não deixando morrer a conversa depois de aceso o rastilho. Porém, faltam-me as palavras perante o olhar de repulsa feito pelo tipo que há pouco entrara no bar. Parece-me um olhar frustrado de homossexual não assumido. Um falso nojo, talvez um nojo de si mesmo ao descobrir em si um de nós e revoltar-se contra isso. Ele desvia o olhar e eu volto a tentar concentrar-me na minha conversa com o velho charmoso e passivo mal assumido à minha frente. Perante o meu silêncio, este resolve ser ele a continuar a conversa e pergunta-me se me assustou o seu modo de falar menos educado de há pouco. Respondo-lhe que de forma alguma, que no meu meio estou habituado a esse tipo de linguagem. Qual o meu meio? Claro, adivinhava-se a pergunta, e resposta na ponta da língua:

- Sou homossexual! Esse tipo de linguagem é usual nos meios mais íntimos – digo, com um ar de quem está a desvendar um pequeno segredo, sabendo – e ambos o sabemos – que não há segredos a ser desvendados para um homem de cinquenta e poucos anos com aquela vivência.

Finalmente, convida-me a levantar e a sair dali, diz ele para tomarmos um copo num local mais privado, longe de olhares de terceiros. Aceito o convite e dirigindo-me para a porta, fito pela última vez o tipo alto que nos olhara com desdenho há pouco. Algo me faz acreditar que o conheço de algum lado. Do meio, quase arriscaria se mo pedissem. Talvez não, talvez me engane…

4

Narrador 3º – Tânia:

Dou mais uma volta na cama e finalmente ouço o ressoar da chave na fechadura da porta principal. O Paulo chegou, finalmente. Olho a custo os ponteiros do relógio de pulso sobre a mesinha de cabeceira. Uma e vinte e três de uma madrugada fria. Mais fria que a anterior, parece-me. Talvez não. O frio é como o tempo, relativo. E psicológico. O Paulo abre finalmente a porta do quarto e eu, como habitualmente, finjo dormir, voltando-me na cama lentamente como quem é perturbado no seu sono mas não chega a acordar. Apetece-me perguntar-lhe por onde andou até estas horas, mas dará a desculpa do costume, por aí a passear a beira-rio e a arranjar inspiração para o próximo livro. Deixo-o acabar de se despir e sinto-o a debruçar-se sobre a cama, devagar, e finalmente a cair sobre esta de uma assentada só. Encosta-se a mim, o que não é muito comum nos dias que correm. Habitual é chegar-me a estas horas a casa, diz que a noite lhe faz bem, lhe inspira, lhe traz outro alento que o dia não. Encostar-se a mim, é coisa que não fez ainda este ano. Está certo que ainda agora o mês primeiro decorre e nem duas semanas passaram de um outro ter findado, mas noutros tempos o Paulo era mesmo Pau-lo para toda a minha obra. Talvez a minha obra se tenha degradado com os anos e o interesse se fora com o assomar das rugas, com o deslindar das marcas próprias da velhice que aí vem, avisando a cada dia que passa. Talvez o Paulo, que ainda é homem interessante, encontre nessas noites que trazem outros alentos que o dia não, a inspiração de que tanto precisa, nas obras de outras formas mais tentadoras. Ou talvez encontrasse e agora não encontre mais e agora vem e encosta-se em mim. Paulo vai-se encostando a ver se eu acordo. Eu finjo acordar e encosto-me um pouco mais a ele, inclino um pouco a cintura e faço as minhas nádegas irem de encontro ao seu homo-erectus, como este gostava de lhe chamar noutros tempos. O Paulo não espera para ter a certeza de que eu estou acordada e penetra-me com violência, jubilando com o meu primeiro gemido, forte, sonoro, dorido. Daí em diante o Paulo põe o seu ritmo, eu ajeito-me ao ritmo dele e gemo, agora mais pelo hábito de outros tempos do que por prazer. O Paulo aumenta um pouco o ritmo e quando finalmente começo a deleitar-me um pouco com a situação, este já está a parar. Apetece-me gritar, não pares, mas de nada valerá a pena, sei-o eu bem que ele já acabou. Sinto-o a desencostar-se vagarosamente, como se não me quisesse incomodar muito, vira-se para o lado, arrepende-se, volta-se de novo para mim, dá-me um beijo nas costas abaixo do pescoço e torna a voltar-se para o outro lado. Uma espécie de agradecimento, aquele beijo. Levanto-me, devagar. No corredor, lá fora, ouço passar o Telmo, que deve ter ido à casa de banho. Espero que ele chegue ao quarto e finalmente avanço para a casa de banho, para me lavar. O Paulo, já se lhe adivinha o ressonar.

5

Narrador 4º – Telmo:

Desligo o computador às pressas e corro para a cama. É a segunda vez hoje, primeiro quando chegou a minha mãe e agora porque é o meu pai que está a chegar. Volta e meia, lembra-se de passar por aqui antes de ir para o quarto dele. Tem chegado tardíssimo, ultimamente. A minha mãe é que parece não gostar nada, tem andado de trombas e volta e meia passa-se e põe-se a chorar, aos gritos no telefone, falando mal dele sabe-se lá com quem. Com alguma amiga, provavelmente. Ou com a avó, que não gosta nada dele. Nunca gostou. E ele também não a grama nem um pouco, que eu bem o ouço a comentar com os amigos da sueca de domingo.

Podia ter ficado a jogar mais um pouco, ele não veio cá hoje. Quando vem, é só para embirrar, já se sabe! Do quarto deles, ouço um grito, é da minha mãe. Do tipo, gemido. Um gemido de dor. Tapo a cabeça com a almofada para não ouvir mais nada, tenho medo que ele lhe esteja a bater. No outro dia deu-lhe um estalo. Ela diz a toda a gente que bateu com o olho numa esquina de um armário mas eu ouvi-a contar à pessoa com quem fala ao telefone, que foi um estalo que ele lhe deu. Diz que foi por ela lhe ter acusado de andar com outras, ficou ofendido. Tiro a almofada de cima da cabeça e ouso levantar-me. Ganho coragem e aproximo-me do quarto deles, desenvencilhando-me primeiramente da porta do meu quarto de uma forma quase silenciosa. Apenas um pequeno ruído, mas nada de que possam dar conta. Ao aproximar-me, ouço ainda gemidos da minha mãe, embora com menos volume e a um ritmo quase continuado. Adivinho o que estão a fazer, mas mesmo assim a curiosidade de os ver suplanta-me e encaixo o olho esquerdo sobre a fechadura do quarto deles. Ao vê-los, encaixados um no outro como nos filmes que o Pedro me mandou pela Internet, sinto nojo e afasto-me repentinamente, recusando-me a ver mais do que aquilo. Volto ao quarto num passo apressado e sem me preocupar muito que me ouçam, assim pode ser que parem. Hão-de pensar que fui à casa de banho, se me ouvirem.

6

Narrador 5ª – Inspector Garcia

Passou uma hora e um quarto desde que aqui chegaram bombeiros, polícia municipal e polícia de segurança pública. Por fim, chego eu, depois de alguém concluir que se trata de um caso para a polícia judiciária, atendendo ao facto de não haverem testemunhas nem infractores no local do crime. Deixou de ser um simples caso de atropelamento a partir do momento em que nem veículo nem condutor se apresentam no local. O corpo já está dentro do alforge próprio e a ser transportado para a ambulância que o há-de deixar num sítio qualquer só para mortos, habitado somente de corpos sem vida e sem espírito, casa dos calados, dizia o meu avô. Dirijo-me ao posto mais alto da polícia de segurança pública para que este me ponha a par de toda a situação. Este explica-me que tem fotos, põe-me a par de alguns pormenores que podem ser importantes, garante-me que não há vivalma que tenha visto o acidente, apresenta-me à primeira pessoa a chegar ao local e a decidir ligar para a polícia e bombeiros, assegura-me que já tratou de tudo para que eu possa ver o corpo sempre que quiser e disponibiliza-se para ajudar no que for preciso, seja a que horas forem. Agradeço-lhe cordialmente toda a preciosa informação bem como a sua disponibilidade e peço-lhe educadamente para me deixar um pouco a sós com o indivíduo mal agasalhado que estabeleceu as ligações telefónicas para polícia e bombeiros. É um indivíduo jovem, faixa etária dos vinte e muitos, trinta anos, bons ares e aparentemente tímido. Quando me aproximo, os seus olhos azuis claros denunciam medo. Pergunto-lhe se não tem frio, responde-me que ao chegar ao local cobriu o cadáver com o seu casaco na esperança de este ainda estar vivo. Não respondeu à minha questão. Pergunto-lhe se tocou no corpo, diz que não, sempre lhe ensinaram que não se toca em corpo acidentado para não causar danos na coluna, deve deixar-se essa parte para os profissionais. Perguntas directas, respostas muito elaboradas, demasiado compridas, gestos nervosos. Medo, denuncia medo.

- Tentou falar com a vítima?

- Sim, claro. Tentei chamá-lo, não pelo nome, claro, que não o conheço de lado nenhum, mas ó amigo, ó amigo, e nada, calculei logo que não respondesse, ao ver tanto sangue no chão à volta da cabeça e do corpo.

- Conhecia a vítima, disse. De onde, já agora?

- Eu disse que não conhecia a vítima. Entendeu mal, senhor inspector.

Rasteira habitual, tentar fazer o indivíduo que faz o depoimento cair em contradição. Este pareceu dar conta do meu intento, dada a transformação no seu olhar. É um indivíduo mais seguro, agora, convencido de que consegue passar bem pelos testes matreiros de um questionário de um inspector da judiciária. Ao contrário do que este estaria à espera, cesso ali o interrogatório e dou-lhe um cartão com o meu nome e número móvel, caso mais tarde se lembre de mais alguma coisa que ache importante para o seu depoimento.

- Sou suspeito, senhor inspector? – Pergunta-me por fim.

- Para já, está apenas a testemunhar! Suspeitos, somos todos, meu caro.

7

Narrador 6º – Alex

Enquanto o subchefe Almeida – segundo a chapa de identificação ao peito – acaba de me explicar que terei de o acompanhar à esquadra a fim de depor como testemunha do processo, vejo aproximar-se um homem alto com ares de alemão e que se identifica como inspector da polícia judiciária. O subchefe da PSP deixa-me por um momento com o fim de receber o senhor inspector e eu distraio-me por um instante a ver os bombeiros transportarem o corpo da vítima para a ambulância. Quando os vejo outra vez, o tipo da farda azul que ainda agora estava a falar comigo está a apontar para mim. Os dois vêm caminhando na minha direcção, devagar, conversando sobre qualquer coisa que não consigo captar e quando finalmente chegam ao pé de mim, o inspector da judiciária pede ao subchefe Almeida que nos deixe a sós por um momento. Por um momento, fico nervoso, mais do que há pouco, deveras arrependido de ter participado a ocorrência à polícia e aos bombeiros. Uma pessoa cumpre a sua obrigação e depois é tudo isto, montes de perguntas, depoimentos na esquadra, burocracias estúpidas, sei lá. Mais parece que num ápice me transformo num criminoso ao invés de testemunha. Testemunha de coisa nenhuma, uma vez que não vi qualquer ocorrência. Quando cheguei, já o homem estava ali caído, corpo na estrada, cabeça rachada no passeio, sangue por todo lado. Ninguém viu nada. O inspector que tem ares de alemão mas é português começa por me perguntar se não tenho frio, ao ver-me de camisa fina numa noite de Janeiro como esta. Um frio terrível, sem dúvida. Respondo que cobri o corpo da vítima com o meu casaco, na esperança de que este ainda estivesse vivo. Faz um olhar desconfiado e pergunta-me se toquei no corpo. Garanto-lhe que não e dou uma explicação plausível. Avança, tentando saber se falei com a vítima, explico que tentei acordá-lo em vão, adiantando ainda que berrei por duas ou três vezes, ó amigo, ó amigo, uma vez que não conhecia a vítima e não lhe podia chamar pelo nome. Após isto, a rasteira, de onde conheço a vítima? Acabei de lhe dizer que não conhecia o tipo e ele vem-me com esta. O senhor inspector a tentar apanhar-me em contra-mão, mas em vão. Friso mais uma vez que não conheço a vítima de lado algum. Aguardo pela próxima rasteira quando por fim este dá por terminada a conversa, entregando-me na mão um cartão em que se apresenta por Inspector Garcia e no qual consta o seu número de telefone móvel. Diz que é para o caso de me lembrar de mais alguma coisa útil após o depoimento que vou deixar na esquadra e que lhe há-de ser entregue.

- Sou suspeito, senhor inspector? – Questiono, mais seguro de mim e com um ar provocador.

- Para já, está só a testemunhar. Suspeitos, somos todos, meu caro. – Responde friamente, enquanto se afasta e caminha de novo na direcção do subchefe Almeida da polícia de segurança pública.

8

Narrador 7º – Ana Jardim

Chego ao ponto de encontro por volta das quinze horas e quinze minutos, um quarto de hora adiantada em relação ao combinado com o tipo da editora. Revejo o recorte do jornal “Editor procura novos talentos, contacte David Chaves, nº xxxxxxxxx”. Foi o que fiz, mandei-lhe uns textos tal como me solicitara no nosso primeiro contacto telefónico e aguardei que me voltasse a contactar, tal como este me pedira. Telefonou-me ontem, marcou este encontro no café e livraria Classe, quinze e trinta, e aqui o espero nervosa e ansiosa. Comigo trago o projecto do livro que lhe quero apresentar. “Segredos de um Maçon” é o título da obra, um romance contemporâneo e na mesma medida histórico que viaja entre o descodificar de um passado e o revelar da vida de um Maçon actual e do seu envolvimento perigoso com uma bela mulher prostituta.

O tipo chega às quinze e trinta em ponto, deve ser adepto da famigerada pontualidade inglesa, reconhece-me pelos cabelos louros e pela camisa cor-de-rosa, aproxima-se, cumprimenta-me com gestos nervosos, diz o nome e pergunta-me se sou a Ana Jardim, ao qual assinto com a cabeça e com um ‘sim’ tímido. Este senta-se no pólo oposto da mesa e pede uma água de limão ao empregado despachado que o parece conhecer bem.

- Traz consigo o trabalho de que me falou?

- Sim. Tenho-o aqui comigo – respondo, enquanto tiro o manuscrito da mala e lho entrego nas mãos muito brancas. Parece estar mais calmo, depois de uma entrada algo nervosa. Tem agora um ar mais seguro, mais adulto e na mesma medida mais charmoso.

- Parece-me um projecto interessantíssimo, pelo que já tivemos oportunidade de falar pelo telefone. Posso levar este manuscrito comigo, ou é o original?

- Claro que pode, tenho outra cópia e tenho tudo guardado no computador.

- Porquê a maçonaria? Porque está na moda este tipo de assunto?

- Não! Comecei a escrevê-lo muito antes de este tipo de obras estarem na moda. Tenho um primo mais velho pelo qual me apaixonei há uns anos e quando descobri que era maçon, passei a segui-lo e a registar alguns dos seus passos. Com o tempo desapaixonei-me do homem e apaixonei-me pelo tema. Ele descobriu-me mas nunca me denunciou, deu-me ainda algumas informações cruciais para o meu trabalho. Aproveitei o gosto que tenho pela escrita e juntei as duas coisas num enredo.

- Está concluído?

- Não! Amanhã será um dia importante para a conclusão do livro. Este meu contacto arranjou-me uma forma de eu poder assistir secretamente a um ritual maçónico. Depois, falta-me apenas um final e fazer o arranjo final da obra, uma última revisão, uns últimos encaixes, um ou outro pormenor que ache que deva emendar, etc. E aguardo sugestões, claro!

- A obra é sua e só sua! Não darei palpites, terá de escrever a sua obra sozinha. E veja lá se tem cuidado consigo, que essa gente pode ser perigosa.

- Darei o meu melhor! Quanto ao resto, não se preocupe, não corro qualquer perigo. Gostou dos textos que lhe mandei?

- Demonstra uma enorme criatividade e uma grande segurança na escrita. Achei alguns dos textos fantásticos, para ser muito sincero.

- Óptimo – e vou dizer mais qualquer coisa quando sou interrompida pela voz deste:

- Vou ler o que tem aqui e aguardo ansiosamente pela conclusão deste trabalho para que possamos passar à fase seguinte.

- E qual é a fase seguinte? – Questiono, adivinhando a resposta.

- A fase da publicação. Posteriormente, a da divulgação. E depois, quiçá, o Projecto Bestseller, que terei a oportunidade de explicar mais tarde.

Não será sonhar alto demais? Projecto Bestseller! Este tipo vem-me para aqui prometer mundos e fundos mesmo antes de conhecer aquilo que escrevi naquele manuscrito meio rasurado que lhe pus nas mãos. Também não me importa sonhar um pouco ou não estaria aqui a tentar a minha sorte, mas calma lá! Um bocado dos pés assentes em terra firme não faz mal a ninguém.

Ficamos ali mais meia hora, mais coisa menos coisa, entre conversas sobre o livro e sobre outras coisas mais, interesses comuns e o concerto que vou dar no fim-de-semana, os lograis e recitais de poesia da banda de originais que tenho desde há dois anos para cá.

Quando peço licença para me ir embora, alegando estar atrasada para o ensaio da banda, este promete estar na primeira fila a ver-nos actuar, no dia do concerto.

Quando saio pela porta, tenho a ligeira sensação que este me admira as partes traseiras do corpo mas saio sem olhar para trás, prosseguindo a minha marcha.

9

Narrador 8º – Guilherme

Aí vem o doutor. Vem com um ar aéreo, meio absorto, parece que à procura de qualquer coisa. Parece que encontrou. Ao que parece, procurava a bela moça sentada à mesa do canto, junto ao palco. Deve ter menos uns quinze anos que ele. Deve ser mais um daqueles encontros secretos que marca com nome falso, um tal de David Chaves, com que propósito, ninguém o sabe. É um gajo com muitos segredos, o doutor. Tão-pouco quer que se saiba que é dono do café-livraria Classe, um espaço cultural e de convívio, um sonho de criança crescida tornado realidade. Aproximo-me lentamente enquanto espero que o doutor cumprimente a bela moçoila loura de olhos azuis e de vestimentas cor-de-rosa. Ao sentar-se, pede que lhe leve uma água com gás e sabor a limão. Apresso-me a ir buscá-la, sou conhecido aqui por ser o empregado mais despachado cá do requintado café cultural de Almada, e como a fama é boa, faço por mantê-la, até porque o doutor premeia sempre o melhor empregado do mês com um bónus no vencimento. Entrego a água da mesma forma despachada e requintada que entregaria a qualquer cliente normal, da mesma forma que entreguei há pouco a água natural à bela moça que agora entrega uma pasta cheia de papelada ao doutor.

- Porquê a maçonaria? – Apanho a pergunta no ar ainda antes de me retirar a fim de atender o casal recém-chegado que se senta na mesa do outro canto da sala.

A pergunta deixa-me curioso! Não me digam que a moçoila é lá dessas coisas dos maçons. Pensei que isso era um meio exclusivo para homens, mas o que sei eu se nunca me aprofundei muito sobre o tema. Mas a pergunta do doutor deixa-me algo curioso. Esqueço e recebo o pedido do casalinho recém-chegado enquanto vejo um rapaz africano aproximar-se a fim de questionar onde fica a sala de Internet. Indico-lhe a sala de Internet, explico-lhe onde tem de pagar a senha para ter acesso a um dos computadores ligados em rede e corro ao balcão para pedir uma imperial e um batido de baunilha para servir ao casal. Enquanto espero que confeccionem o batido, empresto um olho à mesa do doutor. As garrafas estão ambas ainda cheias, não devem querer mais nada, parecem mais interessados em conversar do que em beber, deve ser assunto sério. Ela parece ser uma moça tímida que é como eu gosto delas, tem um olhar meigo e um sorriso frágil. Nos olhos dela, descubro um interesse escondido no perfil do doutor, mas este parece nem dar conta disso, distraído que está nos meandros dos papéis que a moça lhe entregou.

- Esse batido sai ou não sai? – Reclamo com miúdo novo que está a usar a máquina dos batidos pela primeira vez. É uma espécie de praxe, passo a primeira semana a implicar com tudo o que o miúdo faça, a reclamar, a chamar-lhe à atenção das coisas mais ínfimas e a mostrar-lhe quem manda. Para a próxima semana – e se este aguentar a semana da praxe é porque merece cá estar – deixo que trabalhe à vontade, faço-lhe os primeiros elogios e deixo que ganhe alguma confiança.

O miúdo entrega-me o batido, nervoso, peço-lhe que me dê também a imperial e arranco a toda a velocidade até à mesa onde o casal me espera. Entrego o batido, olho à volta, não há mais mesas ocupadas, pelo sim, pelo não, vou até à mesa do doutor perguntar se está tudo bem, se não precisam de mais nada, falam sobre um concerto qualquer num palácio, o doutor pede-me um cinzeiro, tiro um do bolso da bata e coloco-o imediatamente sobre a mesa, a moça sorri olhando-me nos olhos e logo desvia o olhar para lado nenhum, o doutor agradece e diz que está tudo por agora, peço licença, retiro-me e vou até ao balcão onde o colega que me vem substituir às quatro horas já se apresenta fardado e pronto a entrar ao serviço.

- Tal como te prometi, vim quinze minutos mais cedo para ires lá tratar do teu assunto.

Agradeço ao Jaime, corro escadas acima, não sem antes espreitar novamente a mesa do doutor com o intuito de roubar um último sorriso de despedida à moça, mas esta está embrenhada de tal forma na conversa com o doutor que deste não desvia o olhar meigo. Entro nos vestiários e desfardo-me apressadamente. Volto a descer as escadas e despeço-me da colega do balcão de livraria. Esta olha para o relógio para confirmar que estou a sair dez minutos antes da hora mas poupa-se a comentários, sabe que terei uma resposta de mau gosto na ponta da língua. Saio porta fora, lá dentro ficam ainda o doutor e a moça loira a conversarem sobre papéis, maçonarias e concertos em palácios.

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Narrador 9º – Toninho

Hoje o pai vem buscar-me casa da mãe. Hoje vou perguntar-lhe se vem à festa dos meus seis anos, na segunda-feira. O ano passado não veio. No outro dia perguntei à mãe porquê que o pai não fica cá em casa como os pais dos outros meninos lá do colégio. Ela diz que o pai passa muito tempo fora por causa dos livros que escreve. Mas hoje vai levar-me a passear ao parque de diversões. Vou perguntar se o Ricardo pode vir connosco. Ele não tem mais amigos, nem pai, nem mãe. Eu sou a única pessoa que ele tem. O pai deve estar atrasado, porque a mãe está a dizer que ele é sempre a mesma coisa. Não sei que horas são mas quero aprender a ver as horas para saber quando são quatro horas à quinta-feira, o dia em que o pai me vem buscar. Pergunto à mãe que horas são e ela diz-me que o pai já não deve vir ou só deve vir cá dar-me um beijo e vai-se logo embora. Volto a perguntar-lhe que horas são que ela não me respondeu à pergunta que lhe fiz. Ela costuma dizer que sou teimoso como o pai. Responde-me que são cinco e meia, para não me preocupar que o pai deve levar-me a passear amanhã. Agora tenho de explicar ao Ricardo que já não vamos hoje, ele vai ficar triste porque quer conhecer o pai e na semana passada ele também não veio buscar-nos por causa das reuniões dele com os senhores dos livros. A mãe disse que ele vinha na sexta-feira e ele não veio. Explico ao Ricardo que o pai só vem amanhã, ele responde-me que pai é mentiroso, que já não confia nele porque ele está sempre a arranjar desculpas. Explico ao Ricardo que o pai é um homem ocupado mas ele diz que o pai não passa de um homem mau que só pensa no dinheiro e no trabalho. Fico triste quando o Ricardo fala assim do pai ou da mãe, mas às vezes tenho de lhe dar razão. Ele disse-me no outro dia que os outros meninos dormem em casa do pai e da mãe e que eles estão sempre presentes, enquanto o meu pai nunca dorme cá em casa e a mãe deixa-me a dormir em casa da tia ao fim-de-semana, sabendo que a tia me bate quando lhe aviso que o tio faz coisas porcas à prima Alice. Mas eu bem vejo e ele avisa-me para eu estar calado mas eu não tenho medo dele e o Ricardo diz para eu contar sempre tudo à tia. E eu conto e levo. Conto e levo. Não sei porque ela me bate se é verdade o que eu lhe conto. Ela diz que eu sou um menino perverso mas eu não sei o que é isso. Quando conto à mãe que a tia me bate ela diz que é para eu aprender a não ser reguila. Será que perverso é o mesmo que reguila? Se calhar bate-me porque eu sou reguila. Mas o que a mãe não sabe é as coisas porcas que o tio faz à prima, porque ela nunca me deixa explicar porquê que a tia se chateia comigo. O Ricardo diz para no domingo eu chegar ao pé dela e em vez de contar que a tia me bateu, contar logo que o tio faz à prima. Se calhar vai bater-me também. Não, porque a mãe nunca me bateu, só grita comigo às vezes. Ontem gritou comigo no carro quando lhe falei do Ricardo querer vir à minha festa de anos. Disse que eu a assusto com estas conversas. Não percebi porquê, mas calei-me e não falei mais durante a viagem. Depois perguntou-me se tinha ficado chateado, eu nem lhe respondi. Deu-me um beijo e disse que o Ricardo podia vir à festa. Eu não disse nada. O Ricardo disse para eu não falar mais com ela para ela aprender, mas há noite tive de falar com ela para lhe perguntar quando é que era quinta-feira. Ela disse que era hoje e voltou a perguntar se ainda estava chateado com ela. Disse-lhe que já não e senti-me muito aliviado por já falar com a minha mãe. Às vezes, o Ricardo exagera um bocado.

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Narrador 1º – Paulo Roberto

Cinco e um quarto. Tenho de telefonar à Clarisse a avisar que não vou buscar o miúdo. Amanhã vou ter com ele depois de almoço, levo-o ao parque de diversões do centro comercial e depois eu mesmo o levo a casa do tio. Ela vai ficar furiosa, na semana passada nem sequer estive com o puto. O que lhe vou dizer desta vez? Digo-lhe que a Tânia me pediu para a levar à reunião de pais na escola do Telmo e que se fez tarde para ir buscar o Toninho. É uma boa desculpa, há-de compreender. Falo com o miúdo, prometo-lhe que amanhã sem falta o compenso desta ausência de duas semanas.

Marco o número da Clarisse no telemóvel, deixo tocar, quando vou a desistir ela atende.

- Clarisse! Olá, é o Paulo. Olha, como deves calcular é impossível ir aí hoje – adianto, e ainda antes de lhe dar oportunidade para dizer qualquer coisa e começar a resmungar, dou-lhe a desculpa minuciosamente estudada.

- Deixa-me falar com o miúdo – continuo.

» Não quer falar comigo? Porquê?!

» Quem é esse Ricardo?

» Não faz mal, amanhã falo com ele e fica tudo bem.

» Depois deixo-o em casa do teu irmão, janto em casa e vou ver-te em acção, que dizes?

» Vá, um beijo! Tchau! Um beijo ao miúdo… Adeus!!!

Desligo, vou ao menu de registo de chamadas efectuadas, apago o último número marcado não vá a Tânia vasculhar o telemóvel, meto-o no bolso do casaco. Volto a tirá-lo do bolso, lembrei-me que tenho de ligar ao meu editor, já tenho o trabalho concluído, aproveito para lhe contar do novo projecto, lanço este agora no princípio do próximo mês de Fevereiro e peço-lhe para me guardar um lugar no planeamento editorial já para Junho. O Rodrigo fica impressionado como consigo lançar três Bestsellers por ano. O que mais o espanta é que vendo sem aparecer em público, sem dar entrevistas, escondido atrás de um pseudónimo que é mais conhecido que eu, mistério que muitos sonham desvendar, para mais tarde, prometo eu, que no dia em que resolver aparecer, as revistas vão pagar a triplicar, as televisões hão-de querer mostrar o homem por detrás do pseudónimo, as vendas irão disparar e os Bestsellers passarão a ser Mega-Bestsellers.

- Rodrigo, tenho o trabalho concluído.

» Posso entregar-to amanhã, se quiseres.

» De manhã, preferencialmente, que há tarde tenho de vir para a margem sul tratar de uns assuntos.

» Passo pela editora quando sair de casa. Pões logo isso a andar, que em três semanas quero o livro nas bancas.

» Porque já tenho outro para Junho. Até o tenho pronto em Março, mas seria lançá-los um em cima do outro, não me agrada a ideia. Quatro meses de intervalo é o meu timing, como sabes.

» Amanhã conto-te no que consiste.

» Abraço. Até amanhã. Adeus!!!

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Narrador 2º – Gil:

O Rodrigo desliga o telemóvel. Era o homem mistério da literatura portuguesa, diz ele. Só ele o conhece, e a família, claro. E alguns amigos, calculo. Os leitores comuns, esses, nada sabem do homem, que este não aparece em público, não se dá a conhecer, não dá entrevistas. O Rodrigo diz que eu já o conheci, mas não me pode dizer onde e quando, está expressamente proibido de o fazer, acusa-me de ser mexeriqueiro, diz que eu lhe dava logo cabo do negócio. Não sei de que jeito o faria, mas também não insisto, não quero saber, é bom que ambos tenhamos os nossos segredos. E hoje não é um bom dia para entrar em conflito, preciso do carinho do Rodrigo, recebi uma notícia triste, o meu amigo Júlio faleceu, vítima de atropelamento, investiga-se ainda se involuntário ou não, o maldito condutor fugiu do local do acidente, ninguém sabe quem foi, quem é, tal como esse homem misterioso do mundo literário. O Rodrigo, tanto lhe faz a morte do Júlio, não o conhecia, ou conhecia mas não se lembra dele, de uma festa em que o Júlio apareceu acompanhado de um tipo mais velho, um tipo charmoso, misterioso, ar galanteante e muito masculino, apesar do meio em que estava. Apresentei o Júlio, meu colega dos tempos de liceu, o Rodrigo cumprimentou-o quase com desprezo, mais surpreendido em ter reconhecido o tipo charmoso que o acompanhava, talvez estupefacto por não o fazer naquele meio, ou envergonhado pelo facto de o outro não saber que ele estava dentro do meio, ou ambas as coisas. É só gente cheia de segredos, homens misteriosos, escondidos atrás de máscaras e pseudónimos. E o Júlio que morreu, e já nada mais importa para ele, que nunca há-de saber quem o atropelou, quem no fatídico dia de ontem lhe tirou a vida e lhe roubou a alma a dois quarteirões do bar onde eu me deixava levar pela conversa de um velho sedutor que me levaria mais tarde a ter uma noite fantástica num quarto de hotel caro e requintado, longe de adivinhar esse fatídico atropelamento, longe dos olhares de terceiros, longe da consciência de Rodrigo que jamais há-de saber que aproveitei o facto dele só regressar hoje da viagem que fez ao Porto, para passar a noite com um homem diferente, experimentando um perfume diferente, um corpo diferente, um quarto diferente, um dia diferente.

- Em que pensas? – Remata Rodrigo, adivinhando-me ausente.

- Em pessoas misteriosas, no Júlio, sei lá… Em várias coisas…

- Dormiste com esse Júlio?

- Duas ou três vezes, quando éramos colegas no liceu. Ajudou-me a descobrir que era homossexual, embora tenhamos percebido cedo que não encaixávamos, ambos tínhamos mais tendências activas que passivas – confesso e o Rodrigo parece ficar meio chocado. É um homem ciumento, diria até, um pouco possessivo. Tem ciúmes de todas as relações que tive no passado, mesmo antes de o conhecer. Quer ser melhor que eles todos, quer que lhe diga sempre que nenhum me deu tanto prazer como ele, que nenhum deles era suficientemente bom para mim a não ser ele, que apareceu muito mais tarde, homem bem colocado financeiramente, dono de uma editora de renome, amargurado por causa do fim de uma relação falhada com um primo direito, carente.

- Nunca me tinhas contado que tinhas dormido com ele.

- Nunca me perguntaste.

13

Narrador 3º – Tânia:

O Paulo vem para jantar. A princípio estranho, às quintas feira nunca janta em casa. Não sei por que é sempre à quinta-feira, nem tão-pouco lhe pergunto, ele diz sempre que tem uns assuntos pendentes a tratar, sempre à quinta-feira, também os tem variavelmente entre outros dias da semana, mas à quinta-feira é matemático. Hoje vem jantar a casa, por estranho que pareça, sendo quinta-feira. Nem contava com ele, apesar de ele também não ter dito que não vinha, costuma dizer sempre quando não vem, mas é o hábito, não costuma vir. Para mim e para o Telmo faço sempre qualquer coisa, umas sandes, ou umas carnes frias e ovos estrelados, para ele torna-se mais complicado, é mais esquisito, tem gostos mais requintados, paladar de menino rico, filho único nascido em família endinheirada, diz ele, que nunca lhe conheci a família, os pais morreram aos dezasseis, aos seus dezasseis, herdou tudo, veio para a capital, estudou letras, prometeu ser escritor contra a previsão dos professores que apesar de lhe reconhecerem bom português apregoaram-no de carente na construção de narrativa, surpreendeu com uma primeira obra ainda antes de concluir o curso, espantou professores e colegas, nos quais me enquadrava, apaixonei-me pelo livro, depois pelo homem, acabámos o curso, casámos, uma segunda obra, comecei a dar aulas, o Paulo dedicou-se a tempo inteiro à escrita, recusou colaborar com revistas, recusou entrevistas, recusou aparecer, uma terceira obra, dois anos sem escrever nada, um primeiro filho, o Telmo, já lá vão doze anos, e de repente, uma obra por ano durante cinco anos seguidos, passaram a dois romances anuais durante mais quatro anos e os últimos três anos a uma velocidade alucinante de três obras por ano, quase todos Bestsellers, prémios acumulados entregues ao representante legal, o Rodrigo, que é também o seu editor, que o Paulo teima em não aparecer em público, para mais tarde, promete, quando, ninguém sabe, já falta pouco, diz ele, pede paciência. O Rodrigo cuida-lhe de tudo, protege-lhe a imagem, vende-lhe os livros, promete por ele, fala por ele, recebe os prémios por ele, faz tudo por ele. Na rua não reconhecem o Paulo, sabem que é escritor, comenta-se aí, ninguém sabe os livros que escreveu, ninguém se interessa, julgam que qualquer coisa, contos banais daqueles que nunca chegam às livrarias, que se vendem aos amigos e aos conhecidos, um ou outro pergunta, o Paulo inventa um título, dizem-lhe que não conhecem, ou que não encontraram, ou que vão procurar, mas nunca ninguém lê, ninguém conhece, ninguém sabe que o Paulo se esconde atrás do famoso pseudónimo que soa a francês, ninguém há-de saber até ele querer.

14

Narrador 4º – Telmo:

A minha mãe põe a mesa e chama pelo pai, que está no escritório, trancado, tranca-se sempre, gosta de escrever sozinho, sem que ninguém o incomode, põe música clássica para não nos ouvir falar, diz que a mãe tem uma voz chata, seja lá isso o que for. A música dele é que é chata. A minha mãe bate à porta, diz que o jantar está na mesa, que está a arrefecer, ele desliga a música, já vem, grita lá de dentro.

- Fiz uns ovos mexidos. Não contava contigo para jantar – explica a minha mãe.

- Boa merda. Não tinhas mais nada para fazer?

- Não tinha nada descongelado. Não costumas jantar à quinta-feira. Se quiseres, mando vir qualquer coisa.

Começam a discutir, ele trata-a como uma criada, não como esposa. Só pensa em ter tudo pronto quando bem lhe apetece, não pensa que ela também está cansada, o dia todo na escola, chega tarde a casa e ainda tem de ser mulher-a-dias, mãe e cozinheira, coitada. Ele passa o dia todo sem fazer nada, passeio para cá e para lá, mete o irmão a gerir-lhe os negócios, dá-lhe comissão, vai buscar o dele ao fim de cada mês, mete o Rodrigo a tratar-lhe das coisas dos livros, vai buscar o dele ao fim do mês, mete a mãe a cozinhar para ele e a tratar das coisas dele, divide as despesas ao fim do mês. Estou farto de o ouvir discutir com a mãe, de discutir comigo, de discutir com a avó, de discutir com toda a gente, armado em escritor importante. Nunca li um livro dele, só da minha mãe, que a mãe também escreve, e bem, eu gosto, são histórias bonitas, simples, fáceis de ler. Dele, tentei ler um livro, li vinte páginas, não percebi nada, pus de lado, disse-lhe que não gostei, explicou-me que ainda não tenho maturidade para ler os livros dele, que são mais complicados porque estão mais bem escritos que os da mãe, que um dia vou ler e gostar, quando for mais velho e tiver mais maturidade, quando aprender mais e souber mais da vida e da escrita, quem sabe não me torno escritor, sou filho de escritores, mas se for, quero escrever coisas bonitas e simples como a minha mãe em vez de coisas complicadas como o meu pai.

O meu pai sai, zangado, vai jantar fora, e depois há-de voltar às tantas, de certeza, amanhã pede desculpa à mãe e a mãe perdoa-lhe tudo. É preciso ter paciência…

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Narrador 5º – Inspector Garcia:

Senhor Alexandre Alves é até então o único suspeito apurado do assassinato de Júlio Beato. Alexandre Bruno Alves, 28 anos, português, Nem Martins, heterossexual, solteiro, caucasiano, com carta de condução, proprietário de veículo próprio, sem registo de acidentes de viação, registo de uma multa/coima por infracção ao código da estrada por falta de cinto de segurança, sem precedentes criminais, sem qualquer ligação familiar com a vítima, sem qualquer relação intimidade/não intimidade apurada com a vítima, distância de residência considerável entre este e a vítima, não há indícios de contacto directo com a vítima no dia da ocorrência. São motivos de suspeição, primeiro indivíduo a chegar ao local do crime antes da intervenção policial, explicação pouco plausível para o facto de se encontrar no local do crime àquela hora – 1:00 a.m. –, argumentando estar apenas a passear, sozinho, por não ter sono, não esteve com ninguém, não se lembra de ninguém que possa provar a presença dele nalgum lado antes de estar no local da ocorrência, nem tão-pouco à hora que o corpo foi dado como morto – 00:20 a.m. Consideram-se, no entanto, os indícios pouco suficientes para acusar o suspeito de estar evolvido directa ou indirectamente na morte de Júlio José Gomes Beato, 26 anos, português, Alcântara, solteiro, conduta homossexual segundo familiares e amigos, sem parceiro fixo, últimos parceiros desconhecidos e a apurar, registo criminal com anotação de por quatro vezes ter sido considerado desertor ao serviço militar obrigatório, pena cumprida entre os 23 e os 25 anos, prisão militar seguida de serviço militar obrigatório prorrogado, local de residência nas imediações da zona da ocorrência, vítima de homicídio ainda por apurar se qualificado, voluntário e premeditado ou não.

Resta-me, pois então, apurar outros suspeitos, descobrir últimos parceiros e investigar motivos, apalpar novos terrenos, porque este Alexandre Alves parece estar longe de ser o assassino do pobre Júlio. Mais um processo que acabará por ser arquivado, falta de suspeitos, falta de motivos, conclui-se que foi vítima de atropelamento involuntário e que o condutor fugiu com medo das consequências, ficará sempre por apurar quem e como por falta de meios para identificação de veículo e respectivo proprietário.

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Narrador 6º – Alex:

Lar, doce lar, finalmente, já a madrugada clama pelo sol, depois de uma quinta-feira dura, interrogatórios, exames, rituais maçónicos e sexo louco, tudo misturado num dia só parece ser demais.

Prestar declarações pela manhã, depois de dormir pouco com a imagem do jovem morto no passeio a percorrer-me a mente durante toda a noite, o medo de levarem demasiado a sério esta coisa de ser suspeito da morte do tipo a invadir-me o abismo do meu ser, a fervência do sangue a borbulhar-me nos pulsos com uma intensidade incomoda, a afligir-me, a aborrecer-me, a desconcentrar-me do resto das coisas da vida.

À tarde, o exame de filosofia, o exame da minha vida, aquele que me pode encaminhar ao sucesso na pós-graduação, a Mestre em História da Qualidade de Vida e Boémia Contemporânea, a uma carreira, ao sucesso ao fim de vinte e dois anos de livros, cadernos e apontamentos, de noites perdidas a estudar, a decorar a reaprender. Não correu mal o exame, mas também não correu bem, não sei como correu, pode estar tudo certo e pode estar quase tudo errado, se é que se pode errar em filosofia, ou não se estará sempre a errar em filosofia? Não será a filosofia, isso mesmo? Ter a liberdade de errar sobre todas as coisas?! Talvez seja, talvez seja... Agora é esperar pelo veredicto do docente que me avaliará a prova, pela nota final na pauta, pelo número mágico que ditará se tenho ou não – ainda ou para já – condições de ser Mestre, de ser um Filosofo que pode divagar e filosofar à vontade e com a liberdade de não ter de justificar mais os seus pontos de vista perante os professores e os seus iguais, errando sobre a vida e sobre as coisas da vida, perguntando sobre a vida e as coisas da vida, procurando respostas por esse Universo fora, encontrando sempre mais perguntas e mais dúvidas, porque é nas perguntas e nas dúvidas que existe a Filosofia, nunca, jamais, nas respostas.

À noite, o meu baptismo, candidato à Academia, aceite pelo Sapientíssimo, pelos poderes a si concedidos e pelo consenso de toda a academia, que me constituiu verdadeiro Maçon e me permite desde então gozar de todos os privilégios acordados neste augusto grau, ao fim de algum tempo de preparação por um dos académicos Maçons, tornando-me desde hoje um deles, cumpridas as três viagens, em círculo, em esquadro e em triângulo, tendo escutado a aceitação das baquetas de todos os académicos sobre o pavimento, tendo-me sido retirada a venda dos olhos e após isso ter ponderado sobre a terrina onde foi colocado o espírito do vinho, do mercúrio e do sal, que se acendeu e clareou a Academia, prometendo, com palavra de honra e sob pena de ter os lábios trancados e o ventre aberto, de nunca revelar directa ou indirectamente, a quem quer que seja, os mistérios a mim revelados, que o grande Jehova me tenha na sua santa e potente custódia. Foi-me, portanto, dado o sinal, a palavra e o toque, a idade e o nome, condecoraram-me com jóias, com o avental, com as luvas e com a baqueta e me ordenaram a fazer-me reconhecer por todos os académicos presentes no ritual. Isto feito, se estendeu o Quadro sobre o pavimento e se colocaram os três candelabros em triângulo, e tendo tomado o lugar à direita do Sapientíssimo após ter dado os três passos, pronunciei o meu discurso ao qual o Sapientíssimo me respondeu confiando-me o grau de verdadeiro Maçon, explicando-me que a ciência em que agora me inicio é a mais antiga das ciências, Deus a criou ordenando o caos e sendo esta a mais Universal, todas as outras recebem desta os seus princípios, sendo esta a mais necessária, sem esta o homem não é nada mais do que trevas, doenças e misérias, esta é emanada da natureza, ou melhor, esta é a mesma natureza aperfeiçoada mediante a arte, esta é fundamentada sobre a experiência, esta teve os seus adeptos em todos os séculos, e também nos nossos dias uma multidão de artistas sacrificam em vão os seus bens, os seus trabalhos e o seu tempo, isto porque, longe de imitar a nobre simplicidade que o caracteriza e de seguir as vias rectas que esta lhes traça, estes oneram com um fardo que esta não pode suportar e se perdem no labirinto para onde uma louca imaginação os arrasta; as brincadeiras picantes as quais os profanos que, sem respeito a Deus, sem atenção pela natureza, sem estima pela arte, dirigem aos nossos mais sérios mistérios, as sátiras grosseiras destes ignorantes muito pesados pelos próprios sentidos para se elevarem à sublimidade dos nossos conhecimentos, blasfemam sobre tudo aquilo que não podem compreender, disto o apressado ridículo destes indolentes os quais, a menos que um espírito hábil e uma mente laboriosa não faça por estes a despesa da descoberta e do trabalho, desprezam tudo aquilo que não têm força de imaginar nem a coragem de executar, disto enfim os panfletários injuriosos destes temerários, que com uma ousadia plena de má fé, ousam colocar a verdade de sua ciência hermética ao nível das invenções humanas, das superstições populares, sem outro motivo que não seja o desejo de invalidar a autenticidade e a impossibilidade de destruir o caminho. Abandonei, então, desde hoje, os filhos das trevas e estes inimigos de si próprios e toda a vergonha de suas vãs e inconsequentes ideias, voltando-me aos verdadeiros filhos da luz e sinceros amigos da humanidade que vêem nos seus ensinamentos e nas suas práticas a verdade claramente enunciada, saboreando doravante e duradouramente goles de doçura que esta nos apresenta, gozando com reconhecimento das vantagens que esta nos dirige e animado por um único e santo entusiasmo não cessemos de exaltar a omnipotência e a misericórdia infinita de Deus, que se compraz em humilhar os grandes e elevar os humildes. Desde hoje e doravante sou filho de Hermes, o meu objectivo é tratar a pedra triangular, sei o toque que pretende significar a amizade e a sabedoria que devem reinar entre os académicos, a minha palavra passe é o nome da inteligência que preside os metais, a minha palavra sagrada é o nome inefável de Deus, os meus irmãos são os amadores, os meus mestres são os adeptos, o meu nome é amador, a minha idade faz já muito tempo que não conto mais, e sei que a minha academia se apoia sobre três colunas que se chamam Fé, Esperança e Caridade, sendo que a Fé deve preceder a acção, a Esperança acompanhá-la e a Caridade segui-la.

Já a meia-noite dava sinal de si quando finalmente fui iniciado num ritual sexual como nunca imaginara, possuindo duas mulheres diferentes numa mesma noite, numa mistura de corpos e almas que usufruíram dos prazeres o Universo.

Amanhã, espero uma sexta-feira pacata, longe de interrogatórios, exames decisivos, e baptismos em sociedades secretas, durmo até ao meio-dia, almoço na baixa, dou uma volta pelas livrarias – onde leio algumas passagens de livros interessantes –, visito lojas de discos – onde ouço algumas faixas de músicas interessantes –, e corro perfumarias – onde ouso experimentar os perfumes de marcas mais conceituadas e escolho deles o mais interessante. À noite, janto em casa dos meus pais, arranjo o computador da minha irmã, mato saudades do Bush, e no final da noite, se calhar, durmo por lá.

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Narrador 7 – Ana Jardim:

Meio-dia de uma sexta-feira fria de meados de Janeiro, o sol entra a custo pelas persianas semi-cerradas enquanto eu desperto do sono confortável que me acolhe em meu leito. Recordo a noite passada com orgulho e com repugnância na mesma medida. Orgulho-me do que consegui e repugna-me o facto de para isso ter oferecido o meu corpo a um perfeito desconhecido, atraente, é certo, mas não deixa de ser um qualquer.

O ritual decorreu numa vivenda isolada situada em plena área florestal de Linda-a-Velha, perto do Estádio Nacional. Cheguei por volta das vinte e duas horas, deixei o carro num parque de estacionamento que fica nos arredores e percorri cerca de quinhentos metros a pé até à vivenda referida. Ao chegar, coloquei a máscara veneziana que me foi dada pelo meu contacto e toquei à campainha, aguardando que alguém me viesse receber. Ao meu encontro veio um mordomo, alto, vestido de preto, careta sobre o rosto, voz grossa e imponente. Contra-senha em jeito de resposta à senha dada por este e livre acesso à sala onde se encontravam mais nove mulheres e onde me pediram para aguardar a fim de ser chamada a completar o ritual que decorria lá dentro, na sala grande, segundo a minha fonte, a consagração de um jovem candidato ao grau de verdadeiro Maçon. Decorreu uma hora e meia até que nos convidaram, às dez mulheres, a entrar na sala, naquilo a que eles chamam de Academia. Ao entrar deparei-me com um cenário que nunca tinha visto mas que já me fora descrito com rigor pelo meu contacto secreto, aquele que arrisca a vida por ter prometido manter segredo dos mistérios maçons em troca do bem-estar dos seus lábios e do seu ventre. Três colunas brancas e vermelhas colocadas a distâncias iguais sobressaíam na Academia ornamentada de negro iluminada por três luzes colocadas em triângulo. Sobre o pavimento o Quadro, com o círculo tenebroso que representa o caos que Deus criou no início, uma cruz dentro deste que significa a luz por meio da qual se desenvolve esse caos, um quadrado que significa os quatro elementos que resultam desse caos, e um triângulo que representa os três princípios que a mistura dos elementos produz. O circundante de um círculo estrelado designa o firmamento, o círculo estrelado são as águas que Deus colocou sobre o firmamento e designa o céu que vemos. Um outro grande círculo com os signos e os planetas, denota o Zodíaco, um círculo no centro, a água e a terra, uma cruz que lhe está acima significa que o mesmo Deus que criou o céu com a sua omnipotência resgatou-o com a sua bondade, e quatro figuras que lhe estão acima são emblemas do ar e dos quatro ventos. O homem, o sol e a planta que se desenha sobre a face da terra são a imagem dos três reinos da natureza – animal, vegetal e mineral –, que por meio do fogo elementar e do fogo central o orvalho coloca em agitação contínua, atingindo a sua perfeição. Duas letras mais altas – DC – significam que Deus Cria, outras que estão abaixo – NT – que a Natureza Produz, e umas mais inferiores – AM – que a Arte Multiplica. Um altar designado por altar dos perfumes indica-nos o fogo que se precisa dar à matéria, duas torres, o húmido e o seco com os quais se pode operar. No mesmo Quadro pôde ainda verificar a existência do tubo onde se deve procurar o grau do fogo que se deve dar, uma “boule”, e um oco de carvalho que circunda o chamado ovo filosófico. Quando as mulheres entraram no salão, já o Sapientíssimo, o Primeiro e Segundo Sábios se encontravam num varandim que tem vista para o salão. Cá em baixo, dez académicos, incluindo o novo, tinham as mãos sobre o ventre em forma de esquadro, aguardando novas instruções dos maçons superiores no varandim. Seguiram-se então uma série de sinais com as baquetas, respostas e contra-respostas, palmas e palavras estranhas e por fim fazem-nos sinal para começarmos a dança ritual. Daí a nada, tinha escolhido o meu par, careta sobre o rosto, média estatura, forte, mistério por detrás de um fato e de uma máscara, não nos conhecíamos, ele de preto e eu de branco, ambos sabíamos o que aconteceria daí a instantes, usufruindo dos corpos que suportavam a caraça, à frente dos outros que também usufruiriam dos corpos das outras nove mulheres, num ritual sexual como nunca imaginara. A princípio senti-me uma prostituta, mas depois, com o prazer que aquele perfeito desconhecido me estava a dar e para minha surpresa, deixei-me levar pelos acontecimentos e acabei a noite de ontem a ser possuída por três homens diferentes, em misturas loucas de sexo e prazer um pouco sobrenatural, num ambiente carregado de energias estranhas, confusas, alucinantes e aliciantes na mesma medida.

Hoje é apenas uma sexta-feira como outra qualquer, deixo para amanhã ou depois a nova matéria que tenho para acrescentar ao meu romance, hoje vou dar uma volta, almoçar na baixa, ver umas montras pela tarde, e logo, mais pela noitinha, ensaiar para o concerto de amanhã à noite.

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Narrador 8º – Guilherme

Tocam à campainha. Deve ser o doutor, vem trazer o puto. Bingo! Convido-o a entrar e este aceita.

- Quer tomar alguma coisa?

- Aceito um Whisky, se tiveres e não te importares.

Apresso-me a ir buscar o Whisky, tenho fama de ser rápido a servir lá no café-livraria do doutor. Não quero que ele pense que perdi qualidades.

- Continuas uma máquina a servir, até mesmo em casa te aplicas como se estivesses a trabalhar. Não te cansas de ser o melhor naquilo que fazes, pois não?

- Dou sempre o meu melhor, doutor!

- A Teresa não está em casa?

- Tio, posso ir brincar com o Ricardo para o quarto da prima? – O Toninho interrompe a conversa.

- Sim, claro que podes – respondo. Mas quem raio é o Ricardo? Apetece-me perguntar-lhe, mas deixo para mais tarde, talvez tenha ouvido mal. O doutor volta a insistir:

- Estava a perguntar-te se a Teresa não está em casa. Não me chegaste a responder.

- Não sei por onde anda, deve estar a chegar, provavelmente foi às compras, sabia que eu estava em casa para vos receber – respondo, fingindo que a pergunta não me incomoda, que não desconfio que eles têm um caso nas minhas costas. Suporto essa relação há mais de quatro anos, não sei se já dura há mais do que isso, preciso do emprego conseguido a custo por intermédio da minha irmã, guardo silêncio de todos os segredos do doutor, habituo-me a cada dia que passa que ele comanda a minha vida desde que saí da cadeia, dói-me pouco o facto de ele andar com a minha mulher que nunca conheci bem, faz muitos anos, mais de doze, na altura fui preso e deixei-a grávida da Alice, procurou-me ao fim de um ano de ter saído, haviam passado seis anos e meio, já eu tinha emprego, pediu-me que assumisse a filha, que ajudasse a criá-la, que tivesse caridade da criança que ajudara a conceber, que a perdoasse como ela me perdoara a mim e com ela constituísse uma família. Aceitei, casamo-nos ao fim de um mês e meio, pelo civil, não passara ainda um ano e meio desde que casáramos e já ela andava debaixo do doutor. Na altura pensei em matá-lo, depois pensei em todas as consequências, desisti, pensei em confrontá-los, pensei nas consequências, desisti, pensei em conformar-me, pensei as consequências, foi o que fiz.

- Bem, queria só dizer-lhe olá e dizer que tem dinheiro na mala do miúdo, se precisar de alguma coisa, mas tu dás-lhe o recado, ok?

- Claro que sim, vá descansado. Até amanhã, doutor…

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Narrador 9º – Toninho:

O Ricardo diz para eu fazer qualquer coisa, o tio não pode mexer na minha mala assim. Aquele dinheiro não é para ele, é para a tia Teresa, para ela comprar comida e levar-me a passear. O Ricardo diz que se eu o deixar fazer aquilo, a tia não irá connosco ao circo, no sábado, como tinha prometido ao telefone com a mãe, pois não terá dinheiro para isso. O Ricardo diz para eu pegar na raquete da prima e bater-lhe com força na cabeça. Não sei se o deva fazer, às vezes o Ricardo é um bocado exagerado. O tio vai meter o meu dinheiro no bolso dele, tenho mesmo de fazer qualquer coisa.

- Porra! Toninho, porque fizeste isso?

- Porque ias roubar o meu dinheiro…

- Estava apenas a guardá-lo, para dar à tia, para ela comprar coisas para ti, foram as instruções que recebi do teu ai. Estás maluco? Isso doeu e muito.

Acertei-lhe mesmo em cheio na cabeça. O Ricardo diz que o tio está a mentir, que vai mesmo roubar o dinheiro.

- Esse dinheiro ainda é meu, dá cá que eu dou à tia.

- Não confias em mim, Toninho?

- Não confiamos muito em ti, achamos que és mau.

- Quem? Quem é que não confia em mim?

- Eu e o Ricardo. És mau!!!

- Porra, Toninho, quem é o Ricardo e porque raio é que eu sou mau?

- O que se passa aqui? Que gritaria vem a ser esta? – A tia entra no quarto e pede explicações.

- Nada, não se passa nada. Deixa os miúdos brincarem em paz. Estávamos só a discutir por causa de coisas parvas – explica o tio, sem nunca falar no dinheiro.

- O primo diz que o pai é mau. – A prima Alice denuncia o próprio pai, mas a tia parece nem ouvi-la, chama o tio e fecha a porta do quarto.

- Às vezes também penso que o pai é mau – diz a prima, depois de eu, ela e o Ricardo termos ficado sozinhos no quarto.

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Narrador 1º – Paulo Roberto:

O bar está ao rubro, são quase uma da manhã e os homens esperam ansiosamente o momento alto da noite, aquele que há uma em ponto começa a despir o corpo maliciosamente delineado da Clarisse. Lembro-me bem que foi aqui que a conheci, uma noite à espera da uma da manhã, uma e um quarto meto-lhe cinco contos no soutien, entre os seios perfeitos, quais dois marmelos tentadores que há uma e vinte haviam de se mostrar, uma e vinte e cinco vejo-a pendurar-me as cuecas no pescoço, a respiração forte no meu ouvido a convidar-me a vê-la mais tarde, “saio às duas, vai ter comigo lá fora”, e eu fui, quase corro porta fora quando falta um minuto para as duas, encontro-a a sair pela porta dos bastidores, ela fita-me e pergunta-me para onde vamos, sugiro o quarto de um hotel, levo-a, vou vê-la durante semanas seguidas, salvaguardo todas as sextas-feiras que sou eu que vou dormir com ela àquele quarto de hotel, se falhar, outro tomará o meu lugar, sempre o mesmo quarto de hotel, sempre a mesma nota de cinco contos no soutien e mais dez sobre a mesinha de cabeceira, quinze contos por sexta-feira, sexo louco e sem tabus durante semanas seguidas e um dia quando a estou a despir, “estou grávida!!!”

- Tens a certeza?

- Fui fazer o teste à farmácia.

- Não são muito viáveis.

- Na semana que vem vou ser sujeita a testes de sangue, o senhor Alberto obriga-nos a fazer análises de três em três meses, não quer lá drogados nem gente dessa a trabalhar no bar.

- O que fazemos?

- O que sugeres?

- Aborto, se calhar!

- Tenho medo, uma prima minha morreu por causa de um aborto.

- E há-de continuar a acontecer enquanto estes malditos não legalizarem o aborto.

- Não quero abortar.

- E como vais sustentar uma criança? E o teu emprego?

- Paro durante um ano, volto mais tarde se tiver em condições, tu ajudas-me com dinheiro para o teu filho, qualquer coisa me serve a mim, só não quero que falte nada à criança.

- Tens a certeza que é meu?

- Sabia que ias fazer essa pergunta. Nem me vou ofender, embora devesse! Tenho a certeza que é teu, sim! Para ti a minha palavra basta?

- Sim, basta! Desculpa! Estou só um bocado confuso. Fui apanhado de surpresa. Tenho uma família no outro lado, isto não vai facilitar nada as coisas para mim. Compreende que estou um bocado assustado, não me leves a mal.

- Não levo. A tua mulher não precisa de saber. Podemos manter isto em segredo. Gosto de Raquel, ou de António, se for rapaz, é o nome do meu falecido pai, o pequeno Toninho, é um nome bonito, não achas?

E eu já acho tudo o que ela quiser, já não estou nem aí, como dizem os brasileiros! Ela que escolha os nomes que quiser, eu concordo com tudo. Nove meses e é mesmo um António, um Toninho, uma brincadeira de sextas-feiras com uma menina que se despe à uma da manhã e às duas e meia se deita comigo no quarto de um hotel qualquer da cidade, semanas seguidas a chegar a casa às seis da manhã, e a mulher, as primeiras vezes, “outra vez, tão tarde?”

- A malta entretém-se a conversar depois do jantar, ficamos sempre até às tantas, conversas interessantes, intelectuais, nem se dá conta do tempo passar, são assim as tertúlias da malta que escreve, amor!

E depois habitua-se, já não pergunta nada, sabe que às sextas são os jantares da tertúlia intelectual da malta da escrita, quando o Toninho nasce passam a ser à quinta, uma ou outra vez, variadamente, são na mesma à sexta, depende do jeito, e um dia a Tânia:

- Essa da tertúlia já não pega, Paulo.

E eu não respondo, deixo-me ficar, calo-me, ela não toca mais no assunto, parece esquecer, ou parece não se importar, melhor ainda.

- Faz muito tempo que não me vinhas ver, Paulo. – Remata a Clarisse quando às duas da manhã vou ter com ela à porta do bar.

- Resolvi matar saudades dos bons velhos tempos. Continuas a encher a casa e a fazer a malta ansiar pela uma da manhã. Isto, depois de ter um filho e com trinta e muitos em cima dessas pernas, é obra!