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Narrador 8º – Guilherme
Aí vem o doutor. Vem com um ar aéreo, meio absorto, parece que à procura de qualquer coisa. Parece que encontrou. Ao que parece, procurava a bela moça sentada à mesa do canto, junto ao palco. Deve ter menos uns quinze anos que ele. Deve ser mais um daqueles encontros secretos que marca com nome falso, um tal de David Chaves, com que propósito, ninguém o sabe. É um gajo com muitos segredos, o doutor. Tão-pouco quer que se saiba que é dono do café-livraria Classe, um espaço cultural e de convívio, um sonho de criança crescida tornado realidade. Aproximo-me lentamente enquanto espero que o doutor cumprimente a bela moçoila loura de olhos azuis e de vestimentas cor-de-rosa. Ao sentar-se, pede que lhe leve uma água com gás e sabor a limão. Apresso-me a ir buscá-la, sou conhecido aqui por ser o empregado mais despachado cá do requintado café cultural de Almada, e como a fama é boa, faço por mantê-la, até porque o doutor premeia sempre o melhor empregado do mês com um bónus no vencimento. Entrego a água da mesma forma despachada e requintada que entregaria a qualquer cliente normal, da mesma forma que entreguei há pouco a água natural à bela moça que agora entrega uma pasta cheia de papelada ao doutor.
- Porquê a maçonaria? – Apanho a pergunta no ar ainda antes de me retirar a fim de atender o casal recém-chegado que se senta na mesa do outro canto da sala.
A pergunta deixa-me curioso! Não me digam que a moçoila é lá dessas coisas dos maçons. Pensei que isso era um meio exclusivo para homens, mas o que sei eu se nunca me aprofundei muito sobre o tema. Mas a pergunta do doutor deixa-me algo curioso. Esqueço e recebo o pedido do casalinho recém-chegado enquanto vejo um rapaz africano aproximar-se a fim de questionar onde fica a sala de Internet. Indico-lhe a sala de Internet, explico-lhe onde tem de pagar a senha para ter acesso a um dos computadores ligados em rede e corro ao balcão para pedir uma imperial e um batido de baunilha para servir ao casal. Enquanto espero que confeccionem o batido, empresto um olho à mesa do doutor. As garrafas estão ambas ainda cheias, não devem querer mais nada, parecem mais interessados em conversar do que em beber, deve ser assunto sério. Ela parece ser uma moça tímida que é como eu gosto delas, tem um olhar meigo e um sorriso frágil. Nos olhos dela, descubro um interesse escondido no perfil do doutor, mas este parece nem dar conta disso, distraído que está nos meandros dos papéis que a moça lhe entregou.
- Esse batido sai ou não sai? – Reclamo com miúdo novo que está a usar a máquina dos batidos pela primeira vez. É uma espécie de praxe, passo a primeira semana a implicar com tudo o que o miúdo faça, a reclamar, a chamar-lhe à atenção das coisas mais ínfimas e a mostrar-lhe quem manda. Para a próxima semana – e se este aguentar a semana da praxe é porque merece cá estar – deixo que trabalhe à vontade, faço-lhe os primeiros elogios e deixo que ganhe alguma confiança.
O miúdo entrega-me o batido, nervoso, peço-lhe que me dê também a imperial e arranco a toda a velocidade até à mesa onde o casal me espera. Entrego o batido, olho à volta, não há mais mesas ocupadas, pelo sim, pelo não, vou até à mesa do doutor perguntar se está tudo bem, se não precisam de mais nada, falam sobre um concerto qualquer num palácio, o doutor pede-me um cinzeiro, tiro um do bolso da bata e coloco-o imediatamente sobre a mesa, a moça sorri olhando-me nos olhos e logo desvia o olhar para lado nenhum, o doutor agradece e diz que está tudo por agora, peço licença, retiro-me e vou até ao balcão onde o colega que me vem substituir às quatro horas já se apresenta fardado e pronto a entrar ao serviço.
- Tal como te prometi, vim quinze minutos mais cedo para ires lá tratar do teu assunto.
Agradeço ao Jaime, corro escadas acima, não sem antes espreitar novamente a mesa do doutor com o intuito de roubar um último sorriso de despedida à moça, mas esta está embrenhada de tal forma na conversa com o doutor que deste não desvia o olhar meigo. Entro nos vestiários e desfardo-me apressadamente. Volto a descer as escadas e despeço-me da colega do balcão de livraria. Esta olha para o relógio para confirmar que estou a sair dez minutos antes da hora mas poupa-se a comentários, sabe que terei uma resposta de mau gosto na ponta da língua. Saio porta fora, lá dentro ficam ainda o doutor e a moça loira a conversarem sobre papéis, maçonarias e concertos em palácios.
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