Thursday, October 26, 2006

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Narrador 4º – Telmo:

A minha mãe põe a mesa e chama pelo pai, que está no escritório, trancado, tranca-se sempre, gosta de escrever sozinho, sem que ninguém o incomode, põe música clássica para não nos ouvir falar, diz que a mãe tem uma voz chata, seja lá isso o que for. A música dele é que é chata. A minha mãe bate à porta, diz que o jantar está na mesa, que está a arrefecer, ele desliga a música, já vem, grita lá de dentro.

- Fiz uns ovos mexidos. Não contava contigo para jantar – explica a minha mãe.

- Boa merda. Não tinhas mais nada para fazer?

- Não tinha nada descongelado. Não costumas jantar à quinta-feira. Se quiseres, mando vir qualquer coisa.

Começam a discutir, ele trata-a como uma criada, não como esposa. Só pensa em ter tudo pronto quando bem lhe apetece, não pensa que ela também está cansada, o dia todo na escola, chega tarde a casa e ainda tem de ser mulher-a-dias, mãe e cozinheira, coitada. Ele passa o dia todo sem fazer nada, passeio para cá e para lá, mete o irmão a gerir-lhe os negócios, dá-lhe comissão, vai buscar o dele ao fim de cada mês, mete o Rodrigo a tratar-lhe das coisas dos livros, vai buscar o dele ao fim do mês, mete a mãe a cozinhar para ele e a tratar das coisas dele, divide as despesas ao fim do mês. Estou farto de o ouvir discutir com a mãe, de discutir comigo, de discutir com a avó, de discutir com toda a gente, armado em escritor importante. Nunca li um livro dele, só da minha mãe, que a mãe também escreve, e bem, eu gosto, são histórias bonitas, simples, fáceis de ler. Dele, tentei ler um livro, li vinte páginas, não percebi nada, pus de lado, disse-lhe que não gostei, explicou-me que ainda não tenho maturidade para ler os livros dele, que são mais complicados porque estão mais bem escritos que os da mãe, que um dia vou ler e gostar, quando for mais velho e tiver mais maturidade, quando aprender mais e souber mais da vida e da escrita, quem sabe não me torno escritor, sou filho de escritores, mas se for, quero escrever coisas bonitas e simples como a minha mãe em vez de coisas complicadas como o meu pai.

O meu pai sai, zangado, vai jantar fora, e depois há-de voltar às tantas, de certeza, amanhã pede desculpa à mãe e a mãe perdoa-lhe tudo. É preciso ter paciência…

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