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Narrador 2º - Gil
O sol entra pela persiana e clareia o rosto velho de Rodrigo. Está velho. Lembro-me do quão era doce o rosto de Rodrigo há dez aninhos apenas. Ele nunca teve barba, mas as rugas nascem-lhe agora enraizadas nas adversidades e nos sarilhos da mente e floreando sobre a pele que outrora já foi uma pele macia, cara de menino, lembro-me que lhe chamava bebé, nunca mais chamei, nunca mais o foi. Ao lado, sobre a mesinha de cabeceira, um livro, um manuscrito ainda, em folhas A4, tem o pseudónimo do homem mistério na primeira folha, o Rodrigo deve estar a lê-lo. Tudo o que envolve este homem mistério dá-me um calafrio estranho na nuca, desperta-me uma curiosidade rara, mexe-me com as sensações. Inclino o corpo suavemente sobre o corpo do Rodrigo e alcanço o livro sem o acordar. Encosto-me sobre a cabeceira e começo a folheá-lo lentamente, com interesse, uma estranha sensação de que já li nalgum lado, acontece às vezes quando gostamos das coisas que lemos. Espera, mas eu conheço perfeitamente esta passagem, eu já li mesmo isto, não é apenas mais uma sensação estranha de ‘dejavu’. Isto é a porra do livro do Júlio, o falecido Júlio, o meu amigo Júlio. Júlio é o homem mistério? Lembro-me de mo ter mostrado, disse que tinha um editor interessadíssimo. Lembro-me que o título era outro, na altura, ‘Descriminado ao segundo encontro’. Hoje intitula-se ‘Encontro imperfeito’. Reduziu o título, talvez achasse o outro muito comprido. Mas se o Júlio era o homem mistério da literatura portuguesa, o Rodrigo conhecia-o bem, talvez mantivessem uma relação secreta, que raio, que confusão. Porque ficou o Rodrigo tão impávido e sereno ao saber da morte do Júlio? O que esconde o Rodrigo, nesta história confusa? Na noite do acidente não estive com ele, pode ser ele o assassino, posso estar perante o assassino do Júlio. Mas qual a razão? Ciúmes? Medo de se descobrir a suposta relação entre ele e a vítima? Ou pior, quererá o Rodrigo assumir a identidade do famoso escritor e resolveu ver-se livre deste? Não contará que eu já tenha lido o livro do Júlio, posso denunciá-lo, posso colocá-lo na cadeia, preciso de falar com alguém, preciso saber o que fazer, não me posso dar ao luxo de ficar calado, qualquer dia posso ser eu a sua vítima, quem mata uma vez pode fazê-lo a qualquer altura, desde que encontre motivo, desde que ache que não o podem apanhar. Um medo horripilante invade-me a espinha dorsal, desde o cóccix ao pescoço, percorre-a lentamente, uma, duas, três vezes, nasce uma aguada leve nos olhos que se abrem muito na visão amedrontada do Rodrigo sobre a cama, o rosto velho, enrugado, preocupações de uma assassino, quiçá!
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