Thursday, October 26, 2006

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Narrador 7 – Ana Jardim:

Meio-dia de uma sexta-feira fria de meados de Janeiro, o sol entra a custo pelas persianas semi-cerradas enquanto eu desperto do sono confortável que me acolhe em meu leito. Recordo a noite passada com orgulho e com repugnância na mesma medida. Orgulho-me do que consegui e repugna-me o facto de para isso ter oferecido o meu corpo a um perfeito desconhecido, atraente, é certo, mas não deixa de ser um qualquer.

O ritual decorreu numa vivenda isolada situada em plena área florestal de Linda-a-Velha, perto do Estádio Nacional. Cheguei por volta das vinte e duas horas, deixei o carro num parque de estacionamento que fica nos arredores e percorri cerca de quinhentos metros a pé até à vivenda referida. Ao chegar, coloquei a máscara veneziana que me foi dada pelo meu contacto e toquei à campainha, aguardando que alguém me viesse receber. Ao meu encontro veio um mordomo, alto, vestido de preto, careta sobre o rosto, voz grossa e imponente. Contra-senha em jeito de resposta à senha dada por este e livre acesso à sala onde se encontravam mais nove mulheres e onde me pediram para aguardar a fim de ser chamada a completar o ritual que decorria lá dentro, na sala grande, segundo a minha fonte, a consagração de um jovem candidato ao grau de verdadeiro Maçon. Decorreu uma hora e meia até que nos convidaram, às dez mulheres, a entrar na sala, naquilo a que eles chamam de Academia. Ao entrar deparei-me com um cenário que nunca tinha visto mas que já me fora descrito com rigor pelo meu contacto secreto, aquele que arrisca a vida por ter prometido manter segredo dos mistérios maçons em troca do bem-estar dos seus lábios e do seu ventre. Três colunas brancas e vermelhas colocadas a distâncias iguais sobressaíam na Academia ornamentada de negro iluminada por três luzes colocadas em triângulo. Sobre o pavimento o Quadro, com o círculo tenebroso que representa o caos que Deus criou no início, uma cruz dentro deste que significa a luz por meio da qual se desenvolve esse caos, um quadrado que significa os quatro elementos que resultam desse caos, e um triângulo que representa os três princípios que a mistura dos elementos produz. O circundante de um círculo estrelado designa o firmamento, o círculo estrelado são as águas que Deus colocou sobre o firmamento e designa o céu que vemos. Um outro grande círculo com os signos e os planetas, denota o Zodíaco, um círculo no centro, a água e a terra, uma cruz que lhe está acima significa que o mesmo Deus que criou o céu com a sua omnipotência resgatou-o com a sua bondade, e quatro figuras que lhe estão acima são emblemas do ar e dos quatro ventos. O homem, o sol e a planta que se desenha sobre a face da terra são a imagem dos três reinos da natureza – animal, vegetal e mineral –, que por meio do fogo elementar e do fogo central o orvalho coloca em agitação contínua, atingindo a sua perfeição. Duas letras mais altas – DC – significam que Deus Cria, outras que estão abaixo – NT – que a Natureza Produz, e umas mais inferiores – AM – que a Arte Multiplica. Um altar designado por altar dos perfumes indica-nos o fogo que se precisa dar à matéria, duas torres, o húmido e o seco com os quais se pode operar. No mesmo Quadro pôde ainda verificar a existência do tubo onde se deve procurar o grau do fogo que se deve dar, uma “boule”, e um oco de carvalho que circunda o chamado ovo filosófico. Quando as mulheres entraram no salão, já o Sapientíssimo, o Primeiro e Segundo Sábios se encontravam num varandim que tem vista para o salão. Cá em baixo, dez académicos, incluindo o novo, tinham as mãos sobre o ventre em forma de esquadro, aguardando novas instruções dos maçons superiores no varandim. Seguiram-se então uma série de sinais com as baquetas, respostas e contra-respostas, palmas e palavras estranhas e por fim fazem-nos sinal para começarmos a dança ritual. Daí a nada, tinha escolhido o meu par, careta sobre o rosto, média estatura, forte, mistério por detrás de um fato e de uma máscara, não nos conhecíamos, ele de preto e eu de branco, ambos sabíamos o que aconteceria daí a instantes, usufruindo dos corpos que suportavam a caraça, à frente dos outros que também usufruiriam dos corpos das outras nove mulheres, num ritual sexual como nunca imaginara. A princípio senti-me uma prostituta, mas depois, com o prazer que aquele perfeito desconhecido me estava a dar e para minha surpresa, deixei-me levar pelos acontecimentos e acabei a noite de ontem a ser possuída por três homens diferentes, em misturas loucas de sexo e prazer um pouco sobrenatural, num ambiente carregado de energias estranhas, confusas, alucinantes e aliciantes na mesma medida.

Hoje é apenas uma sexta-feira como outra qualquer, deixo para amanhã ou depois a nova matéria que tenho para acrescentar ao meu romance, hoje vou dar uma volta, almoçar na baixa, ver umas montras pela tarde, e logo, mais pela noitinha, ensaiar para o concerto de amanhã à noite.

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