Thursday, October 26, 2006

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Narrador 2º – Gil:

O Rodrigo desliga o telemóvel. Era o homem mistério da literatura portuguesa, diz ele. Só ele o conhece, e a família, claro. E alguns amigos, calculo. Os leitores comuns, esses, nada sabem do homem, que este não aparece em público, não se dá a conhecer, não dá entrevistas. O Rodrigo diz que eu já o conheci, mas não me pode dizer onde e quando, está expressamente proibido de o fazer, acusa-me de ser mexeriqueiro, diz que eu lhe dava logo cabo do negócio. Não sei de que jeito o faria, mas também não insisto, não quero saber, é bom que ambos tenhamos os nossos segredos. E hoje não é um bom dia para entrar em conflito, preciso do carinho do Rodrigo, recebi uma notícia triste, o meu amigo Júlio faleceu, vítima de atropelamento, investiga-se ainda se involuntário ou não, o maldito condutor fugiu do local do acidente, ninguém sabe quem foi, quem é, tal como esse homem misterioso do mundo literário. O Rodrigo, tanto lhe faz a morte do Júlio, não o conhecia, ou conhecia mas não se lembra dele, de uma festa em que o Júlio apareceu acompanhado de um tipo mais velho, um tipo charmoso, misterioso, ar galanteante e muito masculino, apesar do meio em que estava. Apresentei o Júlio, meu colega dos tempos de liceu, o Rodrigo cumprimentou-o quase com desprezo, mais surpreendido em ter reconhecido o tipo charmoso que o acompanhava, talvez estupefacto por não o fazer naquele meio, ou envergonhado pelo facto de o outro não saber que ele estava dentro do meio, ou ambas as coisas. É só gente cheia de segredos, homens misteriosos, escondidos atrás de máscaras e pseudónimos. E o Júlio que morreu, e já nada mais importa para ele, que nunca há-de saber quem o atropelou, quem no fatídico dia de ontem lhe tirou a vida e lhe roubou a alma a dois quarteirões do bar onde eu me deixava levar pela conversa de um velho sedutor que me levaria mais tarde a ter uma noite fantástica num quarto de hotel caro e requintado, longe de adivinhar esse fatídico atropelamento, longe dos olhares de terceiros, longe da consciência de Rodrigo que jamais há-de saber que aproveitei o facto dele só regressar hoje da viagem que fez ao Porto, para passar a noite com um homem diferente, experimentando um perfume diferente, um corpo diferente, um quarto diferente, um dia diferente.

- Em que pensas? – Remata Rodrigo, adivinhando-me ausente.

- Em pessoas misteriosas, no Júlio, sei lá… Em várias coisas…

- Dormiste com esse Júlio?

- Duas ou três vezes, quando éramos colegas no liceu. Ajudou-me a descobrir que era homossexual, embora tenhamos percebido cedo que não encaixávamos, ambos tínhamos mais tendências activas que passivas – confesso e o Rodrigo parece ficar meio chocado. É um homem ciumento, diria até, um pouco possessivo. Tem ciúmes de todas as relações que tive no passado, mesmo antes de o conhecer. Quer ser melhor que eles todos, quer que lhe diga sempre que nenhum me deu tanto prazer como ele, que nenhum deles era suficientemente bom para mim a não ser ele, que apareceu muito mais tarde, homem bem colocado financeiramente, dono de uma editora de renome, amargurado por causa do fim de uma relação falhada com um primo direito, carente.

- Nunca me tinhas contado que tinhas dormido com ele.

- Nunca me perguntaste.

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