Thursday, October 26, 2006

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Narrador 1º – Paulo Roberto

Noite cerrada e fria de Janeiro, os primeiros dias do ano teimam em ser cópia uns dos outros no que toca ao gelo que invade os ossos bem e mal agasalhados das almas nocturnas que vagueiam por Janeiro sem temor. Quando entro no bar, sacudo o casaco como que afastando o frio e vou directo ao balcão onde peço uma cerveja ao tipo de olhos esmiuçados e ar antipático que está do outro lado do que parece ser um muro de pedra envolto em tijoleira com um tampo de mármore. O cheiro faz adivinhar que algum bêbado mijou ali, mesmo contra o balcão, com intento provocador ou até quiçá por simples preguiça de se deslocar à casa de banho ao fundo do corredor ao lado esquerdo do balcão velho e pouco decoroso. Na minha mente viaja a imagem daquele jovem morto no passeio lá fora, ao frio, perdido para sempre, esquecido mal arrefeça a memória dorida da sua perda. Sacrilégio! Bebo um gole da cerveja e olho para o relógio sem ver as horas, apenas para passar o tempo e me distrair das imagens que não me libertam a mente. Levanto a garrafa da cerveja e num gole bebo-a de uma só vez perante o olhar absorto do empregado magro e mal-encarado à minha frente.

- Se eu fosse paneleiro, tinha de ser passivo. Para espetar na peida, espeto no das gajas – comenta um dos dois tipos que parecem estar no engate e que têm pinta de ser paneleiros há muito tempo, não só de agora. A conversa enoja-me um bocado e um dos tipos, o mais magro, repara na minha expressão de repulsa, embora se mantenha em silêncio e opte por não fazer qualquer comentário, nem à minha expressão de repugnância nem tão-pouco ao comentário do seu colega mais velho e com ares de endinheirado.

Abstraio-me da conversa e dos dois tipos abichanados e peço mais uma cerveja pousando apenas o dedo indicador da mão direita sobre o gargalo da garrafa e levantando o da mão esquerda visando assinalar o número um. Um, de mais uma cerveja, sinal que o magricelas compreende de imediato e logo executa na sua tarefa. Vou degustando esta segunda cerveja com mais lentidão, apreciando o seu sabor mais calmamente, enquanto revejo vezes sem conta a imagem da cabeça daquele jovem esmagada contra o lancil do passeio, o olhar vazio e sem alma a olhar para lado nenhum, o corpo inerte e sem vida ali estendido entre o alcatrão e o passeio, o sangue derramado e perdido para sempre largando as veias e rumando à estrada sem destino e sem querer ir para lado nenhum, a mulher que assistiu a tudo do outro lado da rua e que saiu aos gritos rumo a casa, sem querer acreditar no que o pecado dos seus olhos tinham visto, partindo para esquecer, sabendo – como eu – que aquela imagem nunca lhe sairá da cabeça.

Os dois tipos da conversa abichanada parecem entender-se finalmente e saem juntos rumo a um quarto de um hotel qualquer da cidade e no bar ficamos apenas quatro pessoas. Eu, o empregado mal-encarado, uma moça com ares brasileiros e formas bonitas que passa um pano amarelo e húmido sobre o tampo das mesas de madeira escura, e uma elegante mulher alta e bem vestida que da outra ponta do balcão me fita de cigarro longo em riste entre dedos e bem posto entre lábios. Nos seus olhos, um convite, no copo à sua frente, qualquer coisa com groselha que parece não agradar muito os gostos requintados da senhora que de imediato solicita ao empregado por um Whisky-cola. Um toque acidentado do empregado e o copo da groselha entorna-se sobre o balcão, e naquele instante é sangue que eu vejo, sangue que se espalha entre a estrada e a calçada, sangue de um crânio esmagado brutalmente pela violência de um choque. A mulher, pomposa, fita-me mais uma vez e acaba por desistir perante a passividade por mim demonstrada.

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