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Narrador 5ª – Inspector Garcia
Passou uma hora e um quarto desde que aqui chegaram bombeiros, polícia municipal e polícia de segurança pública. Por fim, chego eu, depois de alguém concluir que se trata de um caso para a polícia judiciária, atendendo ao facto de não haverem testemunhas nem infractores no local do crime. Deixou de ser um simples caso de atropelamento a partir do momento em que nem veículo nem condutor se apresentam no local. O corpo já está dentro do alforge próprio e a ser transportado para a ambulância que o há-de deixar num sítio qualquer só para mortos, habitado somente de corpos sem vida e sem espírito, casa dos calados, dizia o meu avô. Dirijo-me ao posto mais alto da polícia de segurança pública para que este me ponha a par de toda a situação. Este explica-me que tem fotos, põe-me a par de alguns pormenores que podem ser importantes, garante-me que não há vivalma que tenha visto o acidente, apresenta-me à primeira pessoa a chegar ao local e a decidir ligar para a polícia e bombeiros, assegura-me que já tratou de tudo para que eu possa ver o corpo sempre que quiser e disponibiliza-se para ajudar no que for preciso, seja a que horas forem. Agradeço-lhe cordialmente toda a preciosa informação bem como a sua disponibilidade e peço-lhe educadamente para me deixar um pouco a sós com o indivíduo mal agasalhado que estabeleceu as ligações telefónicas para polícia e bombeiros. É um indivíduo jovem, faixa etária dos vinte e muitos, trinta anos, bons ares e aparentemente tímido. Quando me aproximo, os seus olhos azuis claros denunciam medo. Pergunto-lhe se não tem frio, responde-me que ao chegar ao local cobriu o cadáver com o seu casaco na esperança de este ainda estar vivo. Não respondeu à minha questão. Pergunto-lhe se tocou no corpo, diz que não, sempre lhe ensinaram que não se toca em corpo acidentado para não causar danos na coluna, deve deixar-se essa parte para os profissionais. Perguntas directas, respostas muito elaboradas, demasiado compridas, gestos nervosos. Medo, denuncia medo.
- Tentou falar com a vítima?
- Sim, claro. Tentei chamá-lo, não pelo nome, claro, que não o conheço de lado nenhum, mas ó amigo, ó amigo, e nada, calculei logo que não respondesse, ao ver tanto sangue no chão à volta da cabeça e do corpo.
- Conhecia a vítima, disse. De onde, já agora?
- Eu disse que não conhecia a vítima. Entendeu mal, senhor inspector.
Rasteira habitual, tentar fazer o indivíduo que faz o depoimento cair em contradição. Este pareceu dar conta do meu intento, dada a transformação no seu olhar. É um indivíduo mais seguro, agora, convencido de que consegue passar bem pelos testes matreiros de um questionário de um inspector da judiciária. Ao contrário do que este estaria à espera, cesso ali o interrogatório e dou-lhe um cartão com o meu nome e número móvel, caso mais tarde se lembre de mais alguma coisa que ache importante para o seu depoimento.
- Sou suspeito, senhor inspector? – Pergunta-me por fim.
- Para já, está apenas a testemunhar! Suspeitos, somos todos, meu caro.
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